A elevação de uma
condição singular ao posto de universalidade, sem mediações, pode ser, ainda
que não se queira, o “beco sem saída” contraditório de uma situação “sem
resolução”. É preciso enfrentá-lo. Mas de cabeça erguida e com a complexidade
exigida pela situação.
1. A condição
subjetiva é, também, objetiva: dialética da formação do indivíduo
O indivíduo não é um
átomo, uma mônada, isolado e autossuficiente. Tampouco alguma de suas características,
físicas ou quaisquer outras, podem ser elevadas, por si mesmas – autonomamente –,
à primazia.
As condições
subjetivas, sejam quais forem, são – e foram, num processo histórico complexo – elevadas à condição de definição por
conta da redução de múltiplas características a uma, que as coordenaria e
submeteria. As características, físicas e mentais de indivíduos, somente seriam
consideradas sob a condição de dependência de uma (ou algumas) categoria
elevada à objetividade[1].
Objetivamente, tal categoria designaria todos os indivíduos universalmente, ao
passo que suas características individuais – singulares – somente teriam
sentido caso subordinadas àquela. Foi o que fizeram os eugenistas – brasileiros
coloniais ou imperiais e alemães nazistas – quando reduziram indivíduos
múltiplos a uma categoria que eles mesmos, eugenistas, haviam elevado ao
primado. No entanto, a eleição de uma categoria não é tão arbitrária quanto
parece. Depende-se de um processo da história que é também feita pelos indivíduos
juntamente com o acaso e o esquecimento: as condições são forjadas sem a
necessidade de um mando subjetivo e com a seleção histórica de elementos que
deveriam, segundo a visão daqueles que dominam o campo das ideias,
especialmente, serem considerados e outros que cairiam no limbo do esquecimento
permanente. As pesquisas mais profundas, nesse sentido, não seriam as que
reafirmam o que todos já sabem, de algum modo. Mas aquelas que trazem esses
elementos soterrados – histórica e ideologicamente.
Os indivíduos, então,
não podem se definir por si mesmos, ainda que estejam numa situação histórica
na qual o individualismo ganhe extremo destaque. Seres pretos não se definiam
como escravos, nem como pretos, por autonomia e vontades de resiliência ou
resistência. Não sem antes serem mediados por uma condição histórico-específica.
A formação do sujeito preto na colônia, por exemplo, passa pela aceitação
dominante de que, antes de tudo, são
pretos e escravos[2]
– resistentes em quilombos ou não. Ele somente pode aceitar, de algum modo, a
definição de preto quando isso aglutina a resistência: negativamente, portanto. Afirmar, no sentido positivo mesmo, a cor
da pele ou a condição social é, para além do combate necessário, sucumbir à
designação do senhor. Ainda que seja necessária a afirmação, ela só é quando
afirma, conjuntamente, sua superação. Só é, então, quando se autonega.
Não é a consciência do
indivíduo que o faz ser ou deixar de ser algo. A consciência, por um lado, é
produto de condições objetivas, pois é mediada, é forjada no seio de uma
situação complexa. Por outro, é subjetiva na medida em que mesmo sua autonomia
é capenga, dependente de uma gama de situações. Ser negro, gay, pobre, mulher e etc., não confere, nem pode
logicamente conferir, todas outras designações como expressões menores que
viriam a reboque. A lógica é deficiente quando pensa que o ser pobre, por
exemplo, deve lutar contra a pobreza e não se resignar, como um conteúdo moral a priori de sua condição de pobreza. Não
há, histórica e praticamente, nenhuma ligação lógica entre ser pobre e ser
anticapitalista (ou anti o que for). Pelo
contrário, o capitalismo somente se estabelece com a anuência da maioria que
viveria sob o princípio geral capitalista: ter alguma mercadoria para negociar
no mercado em troca de sua sobrevivência, sendo ele mesmo sua própria
mercadoria (como força de trabalho que deve se tornar mercadoria, forçosamente,
pois não possui qualquer outra mercadoria para “vender”; e pelo “querer”
subjetivo dessa condição: aceitação como segunda
natureza). Da mesma forma, então, a condição subjetiva de qualquer “grupo
especializado” – pobres, mulheres, pretos, indígenas e etc. –, ou mesmo de
qualquer indivíduo desses grupos, somente tem razão de ser caso se considere
objeto ao mesmo tempo em que é sujeito; e caso considere ser sujeito mediado, heterônomo
em alguma medida.
As afirmações que
consolidam o indivíduo enquanto pertencente, antes de qualquer coisa, a algum
grupo, já é reprodução de uma segunda natureza aceita enquanto tal, mesmo que
aparente legítima defesa e autodeterminação. Definir-se como “negro/preto”,
colocando abaixo desta designação todas as demais, é aceitar, ainda que com
certo tipo de resistência, a imposição da história. E, diga-se, uma história à
revelia do indivíduo resistente e dependente da definição como autoafirmação do
próprio indivíduo[3].
2. Elevação da “segunda
natureza” ao posto de decisão autônoma: substantivação de um adjetivo-objetivo
Ser negro/preto parece
ser uma decisão autônoma daquele que tem a pele escura – seja em qual
tonalidade for. Ao mesmo tempo em que pode ser isto, é também aceitação de uma
designação que fraciona a sociedade fracionada: impõe a fragmentação não como
fragmentação objetiva, vinda de cima, porém como decisão individual: coloca uma
aporia histórica como segunda natureza
decidida pela autonomia subjetiva[4].
Não é o caso de abrir mão de se afirmar como pertencente a algum grupo
marginalizado. Contudo, é o caso de saber que essa definição é imposição de um
tipo de sociedade e que limita o indivíduo na mesma medida em que poderia o
libertar. Aceitar a designação somente teria efeito – e isto não é um conselho moral ou mesmo um dizer sobre como deve ser a
prática de resistência das pessoas – caso elevasse, junto à afirmação, seu
lado negativo: aceitar a definição ao
mesmo tempo em que tende à rompê-la; não é o caso de a afirmar sem ressalvas –
pois, a afirmação já contém, em si mesma, a submissão histórica. Não se trata,
todavia, de ser negro/preto que, para romper com a sua condição de submissão
histórica, precisa se elevar ao status de pequeno-burguês, isto é, sair da
condição de miserabilidade que vem colada ao adjetivo negro/preto e reafirmar,
mais uma vez, aquilo que produz profundamente sua miséria histórica. O que
importa é a ruptura da situação que engendra a incapacidade dos outros
adjetivos – atributos individuais – de se expressarem sem submissão a um único
adjetivo (este objetivado e elevado à condição de substantivo: o negro/preto). Na medida em que se
define, sem mediação, como negro/preto,
estabelece-se que todas as outras designações somente terão validade caso
coadunem com o a priori do ser preto.
Por exemplo: eu – e aqui me coloco como pessoa – não posso ser um negro/preto
perfeito (e percebam a contradição do padrão “perfeito”) já que, apesar de minhas
inquietações e consciência de todo problema social daqueles que se igualam a
mim pela cor da pele ou pela condição que a cor da pele traz, namoro com mulher
“branca” – e isto contradiz, segundo a lógica exposta, a perfeição de minha “militância”,
“consciência” e “negritude” ou minha consciência não está completamente “formada”.
Ora,
só há possibilidade de se pensar assim pela adjetivação em mão única e em linha
reta. Explico. Por um lado, os adjetivos “negro” ou “preto” somente fazem
sentido como designação definidora ao serem elevados à objetividade. E são elevados
não por conta da autonomia dos negros/pretos que assim o quiseram; mas pelo
desenrolar histórico que submeteu todo o resto à primazia da “cor da
pele/condição social” – tal como no sistema de castas. Por outro, toma-se este
adjetivo que, por sua objetivação/generalização, agora é um substantivo – O negro, O preto, e, junto a eles, todos os atributos que deveriam, necessariamente, os acompanhar –, como
anulador de algumas designações ao mesmo tempo em que valida outras.
Fulana/o preta/o deve, necessariamente, se
relacionar, namorar e casar com homens/mulheres pretos/as. A grande questão é
que, especialmente os/as pretos/as militantes, intelectualizados, não percebem
que há uma gama de adjetivos que somente fazem sentido conjugados: qual mulher
preta o homem preto que frequenta balada de pretos, veste-se como preto, tem
consciência dos problemas dos pretos, estuda questões relacionadas aos pretos e
etc., quer se relacionar? Ora, o que tenho visto, em muitos anos – inclusive entre
meus amigos (e que me desculpem o argumento, ainda que eu já o tenha expressado
mais de uma vez) –, é que há uma primazia de um adjetivo, substantivado, e
anulação e afirmação de outros ao mesmo tempo. Quer-se “mulher preta” – mas que
seja consciente de sua negritude, seja intelectualizada, goste de coisas de
pretos, saiba o que é ancestralidade, que estude questões de pretos, frequente
baladas de pretos, tenha orgulho da cor e do cabelo, seja minimamente bonita
para os padrões “aceitos”. A mulher preta, gorda, com a pele e os dentes zoados por
conta das condições de pobreza, que não tem consciência, ou plena consciência
(como a, contraditoriamente, exigida), que não frequenta lugares X ou Y, alisa
o cabelo por conta da aceitação social e pela “vergonha” – que é entendível,
pelo menos até certo ponto –, enfim, esta mulher não entra na conta. E isto
vale para o inverso, da relação mulher-homem[5]
(não falarei da homossexualidade
por ser outra coisa, mais complexa, e por eu não ter capacidade de argumentar
sobre).
Ora, caso se coloque em
linha: gosto/relaciono-me com mulher
preta[6]
(indireta e internamente está se dizendo:), intelectualizada,
consciente, com discurso afiado e etc., e excluem-se todas as outras,
inclusive as de cor de pele preta, que não se encaixam nos padrões ou nas “afinidades
eletivas” em voga. Caso se exclua a “retidão” – que é a submissão dos outros
adjetivos ao adjetivo primordial – e a “mão única”, ter-se-á, somente, um
adjetivo a mais que, como os outros, diz pouco: gosto de mulher
intelectualizada, que frequente lugares X e Y, que tenha consciência de sua
singularidade, que tenha orgulho de si mesma e seja (insira a cor da pele que desejar). Não é o caso, reiterando, de
desclassificar ninguém, tampouco reduzir a necessidade de uma consciência
acerca do problema. Mas evidenciar que a cor da pele diz pouco ou nada sobre o
indivíduo isoladamente. Somente diz sobre ele dentro de uma situação
histórico-social específica. Além disso, tal situação histórico-social pode
atirar para todos os lados ao condicionar ou mesmo determinar a subjetividade. O
“Menino Feriado”, eleito pelo MBL, é
uma expressão objetiva disso. Somente poderia se dizer que é um “caso isolado”
ou mesmo um exemplo “subjetivo” ao se desconsiderar a formação subjetiva
determinada pela objetividade, conjugada à formação objetiva. Somente, então,
ao se olhar pelo prisma do sujeito e não do objeto.
Black Panthers: a conjugação da luta contra o racismo
e contra o capitalismo
Ser Preto/Negro, como
substantivo, que subordina os demais adjetivos, é, de um lado, aceitação da
condição de afirmação e morte dos próprios indivíduos pretos; por outro,
negação da multiplicidade e incapacidade de conceber o racismo como objetivo,
como problema social relacionado à luta de classes, e a própria luta de classes
ser estigmatizada e relegada – o “Menino Feriado”
deixa isso “claro”. É um problema que, concebido da forma tradicional – aquele
que parte da primazia da cor da pele/suposta condição social do ser preto[7]
–, cai no impasse de afirmar inclusive aquilo que veementemente negaria se não
fosse com um(a) preto/preta-protagonista, e cai também no impasse de não se
saber o que fazer, de evitar a crítica profunda e dura, de arrumar algum
subterfúgio para tocar o problema somente obliquamente, de, por fim, sentir
culpa.
Chegamos ao ponto: o “Menino
Feriado” não é uma exceção, mas um sintoma; não é um caso isolado, mas algo
objetivo, bem mais complexo do que
simplesmente dizer que “a culpa é da sociedade” – como se a sociedade fosse uma
entidade à parte. Chegamos ao ponto: relacionar-se somente com negros/as//pretos/as,
ou com coisas de negros/pretos, não faz ninguém mais militante contra o racismo
e etc.; pode fazer, sim, ser um submisso à estrutura lógica absurda da
sociedade tal como se configurou historicamente, ainda que não se tenha
consciência da submissão (de fato: muitas pessoas têm boas intenções, são boas
militantes e etc., mas isso não anula o fato de que há uma estrutura abstrata
dominante que impõe inclusive a lógica de contestação a si própria). Sem o
prisma do objeto, sem conceber o sujeito como mediado, é impossível chegar a
tais conclusões. Não que elas sejam verdadeiras. Contudo, pretendem dar um nó
no raciocínio tradicional e apontar as contradições (popularmente: pôr o dedo
na ferida egóica).
O “Menino Feriado”:
sintoma da história e aporia da
forma tradicional de crítica
[1]
Na sociedade de classes e raças – a sociedade brasileira –, há um adjetivo
primordial que toma o posto de substantivo (ele designa o indivíduo em sua
completude) e que subordina todos os demais, os demais somente fazendo sentido
referindo-se a ele. Ex.: o indivíduo é gay, mas
tem caráter, é boa pessoa e etc. O “mas” mata toda a intenção pela raiz, na
mesma medida em que a totalidade do indivíduo está sob a pecha do “gay”: primeiro
ele é gay, depois pessoa – não o contrário, que seria menos “desumano”. Gay se
torna uma categoria universal que determina todas as demais. E é universal por
uma complexidade do movimento da sociedade, não por si mesma. Não é o fato de
alguém ficar com outro alguém do mesmo gênero que define o “ser gay”, mas em
que tipo de sociedade e de estrutura de relações sociais, morais e etc., em que
isso ocorre que é o determinante.
[2]
Ou seja, reduzidos a esta condição não por vontade própria, mas pela “ordem das
coisas” na situação histórica.
[3]
A história do Brasil, por exemplo, somente se processa e mantém os grupos
dominantes no local onde estão por conta de as condições basilares da sociedade
continuarem estáticas. Em outras palavras, a história do Brasil – e sua
continuidade sem rupturas e transformações profundas na estrutura social –,
depende da continuidade dessa fragmentação histórica da sociedade em grupos que
aceitam seu “lugar de fala” – que é, por complexo que seja, sua submissão –
como aceitação e ratificação – mais passiva.
[4]
Em última instância, a morte da subjetividade (da individualidade) depende da
afirmação extrema (da vida plena) do individualismo.
[5]
O fato de se ter criado um nicho que confere poderes especiais para aquele que
se designa como Preto/a, faz a
contradição aumentar: o que seria uma mulher qualquer (desconhecida, não-preta)
tirar fotos seminua? Ou mesmo se alguma menina preta, mas não intelectualizada,
que não ouve Cartola nem sabe quem foi Malcolm X, posasse nua... o que seria
feito dela? Tenho lá minhas dúvidas quanto ao cinismo geral instalado – que se
tornou a regra de convivência do “bom mocismo militante-loquaz” vigente. O que
dizer de homens pretos que deploram aqueles que assumem relacionamento com
mulheres brancas mas, na surdina, saem com brancas, apesar de sempre assumirem
relacionamentos somente com a “preta padrão” (intelectualizada, consciente e
etc.)? Não é o caso julgar ninguém. Porém, cabe romper com o cinismo e com a
falsidade, ou, principalmente, com a “interpretação de superfícies” e entrar na
coisa, entendê-la e rompê-la, não
ficar a mantendo indefinidamente somente para, ainda que inconscientemente,
manter seu próprio status.
[6]
Para não ficar repetitivo, saiba que vale para o inverso: gosto de homem preto...
[7]
Suposta condição social: entra no mesmo argumento. Entende-se,
tradicionalmente, que o fato de alguém ser preto lhe dá superpoderes que o
confere a capacidade de ter milhares de atributos dentro da sociedade, para o
bem e para o mal.
Subsolo!
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