sexta-feira, 4 de novembro de 2016

A enviesada condição do “ser negro” – OU – Substantivação de um adjetivo-objetivo


        A elevação de uma condição singular ao posto de universalidade, sem mediações, pode ser, ainda que não se queira, o “beco sem saída” contraditório de uma situação “sem resolução”. É preciso enfrentá-lo. Mas de cabeça erguida e com a complexidade exigida pela situação.

1. A condição subjetiva é, também, objetiva: dialética da formação do indivíduo
        O indivíduo não é um átomo, uma mônada, isolado e autossuficiente. Tampouco alguma de suas características, físicas ou quaisquer outras, podem ser elevadas, por si mesmas – autonomamente –, à primazia.
          As condições subjetivas, sejam quais forem, são – e foram, num processo histórico complexo – elevadas à condição de definição por conta da redução de múltiplas características a uma, que as coordenaria e submeteria. As características, físicas e mentais de indivíduos, somente seriam consideradas sob a condição de dependência de uma (ou algumas) categoria elevada à objetividade[1]. Objetivamente, tal categoria designaria todos os indivíduos universalmente, ao passo que suas características individuais – singulares – somente teriam sentido caso subordinadas àquela. Foi o que fizeram os eugenistas – brasileiros coloniais ou imperiais e alemães nazistas – quando reduziram indivíduos múltiplos a uma categoria que eles mesmos, eugenistas, haviam elevado ao primado. No entanto, a eleição de uma categoria não é tão arbitrária quanto parece. Depende-se de um processo da história que é também feita pelos indivíduos juntamente com o acaso e o esquecimento: as condições são forjadas sem a necessidade de um mando subjetivo e com a seleção histórica de elementos que deveriam, segundo a visão daqueles que dominam o campo das ideias, especialmente, serem considerados e outros que cairiam no limbo do esquecimento permanente. As pesquisas mais profundas, nesse sentido, não seriam as que reafirmam o que todos já sabem, de algum modo. Mas aquelas que trazem esses elementos soterrados – histórica e ideologicamente.
               Os indivíduos, então, não podem se definir por si mesmos, ainda que estejam numa situação histórica na qual o individualismo ganhe extremo destaque. Seres pretos não se definiam como escravos, nem como pretos, por autonomia e vontades de resiliência ou resistência. Não sem antes serem mediados por uma condição histórico-específica. A formação do sujeito preto na colônia, por exemplo, passa pela aceitação dominante de que, antes de tudo, são pretos e escravos[2] – resistentes em quilombos ou não. Ele somente pode aceitar, de algum modo, a definição de preto quando isso aglutina a resistência: negativamente, portanto. Afirmar, no sentido positivo mesmo, a cor da pele ou a condição social é, para além do combate necessário, sucumbir à designação do senhor. Ainda que seja necessária a afirmação, ela só é quando afirma, conjuntamente, sua superação. Só é, então, quando se autonega.
          Não é a consciência do indivíduo que o faz ser ou deixar de ser algo. A consciência, por um lado, é produto de condições objetivas, pois é mediada, é forjada no seio de uma situação complexa. Por outro, é subjetiva na medida em que mesmo sua autonomia é capenga, dependente de uma gama de situações. Ser negro, gay, pobre, mulher e etc., não confere, nem pode logicamente conferir, todas outras designações como expressões menores que viriam a reboque. A lógica é deficiente quando pensa que o ser pobre, por exemplo, deve lutar contra a pobreza e não se resignar, como um conteúdo moral a priori de sua condição de pobreza. Não há, histórica e praticamente, nenhuma ligação lógica entre ser pobre e ser anticapitalista (ou anti o que for). Pelo contrário, o capitalismo somente se estabelece com a anuência da maioria que viveria sob o princípio geral capitalista: ter alguma mercadoria para negociar no mercado em troca de sua sobrevivência, sendo ele mesmo sua própria mercadoria (como força de trabalho que deve se tornar mercadoria, forçosamente, pois não possui qualquer outra mercadoria para “vender”; e pelo “querer” subjetivo dessa condição: aceitação como segunda natureza). Da mesma forma, então, a condição subjetiva de qualquer “grupo especializado” – pobres, mulheres, pretos, indígenas e etc. –, ou mesmo de qualquer indivíduo desses grupos, somente tem razão de ser caso se considere objeto ao mesmo tempo em que é sujeito; e caso considere ser sujeito mediado, heterônomo em alguma medida.
           As afirmações que consolidam o indivíduo enquanto pertencente, antes de qualquer coisa, a algum grupo, já é reprodução de uma segunda natureza aceita enquanto tal, mesmo que aparente legítima defesa e autodeterminação. Definir-se como “negro/preto”, colocando abaixo desta designação todas as demais, é aceitar, ainda que com certo tipo de resistência, a imposição da história. E, diga-se, uma história à revelia do indivíduo resistente e dependente da definição como autoafirmação do próprio indivíduo[3].

2. Elevação da “segunda natureza” ao posto de decisão autônoma: substantivação de um adjetivo-objetivo
          Ser negro/preto parece ser uma decisão autônoma daquele que tem a pele escura – seja em qual tonalidade for. Ao mesmo tempo em que pode ser isto, é também aceitação de uma designação que fraciona a sociedade fracionada: impõe a fragmentação não como fragmentação objetiva, vinda de cima, porém como decisão individual: coloca uma aporia histórica como segunda natureza decidida pela autonomia subjetiva[4]. Não é o caso de abrir mão de se afirmar como pertencente a algum grupo marginalizado. Contudo, é o caso de saber que essa definição é imposição de um tipo de sociedade e que limita o indivíduo na mesma medida em que poderia o libertar. Aceitar a designação somente teria efeito – e isto não é um conselho moral ou mesmo um dizer sobre como deve ser a prática de resistência das pessoas – caso elevasse, junto à afirmação, seu lado negativo: aceitar a definição ao mesmo tempo em que tende à rompê-la; não é o caso de a afirmar sem ressalvas – pois, a afirmação já contém, em si mesma, a submissão histórica. Não se trata, todavia, de ser negro/preto que, para romper com a sua condição de submissão histórica, precisa se elevar ao status de pequeno-burguês, isto é, sair da condição de miserabilidade que vem colada ao adjetivo negro/preto e reafirmar, mais uma vez, aquilo que produz profundamente sua miséria histórica. O que importa é a ruptura da situação que engendra a incapacidade dos outros adjetivos – atributos individuais – de se expressarem sem submissão a um único adjetivo (este objetivado e elevado à condição de substantivo: o negro/preto). Na medida em que se define, sem mediação, como negro/preto, estabelece-se que todas as outras designações somente terão validade caso coadunem com o a priori do ser preto. Por exemplo: eu – e aqui me coloco como pessoa – não posso ser um negro/preto perfeito (e percebam a contradição do padrão “perfeito”) já que, apesar de minhas inquietações e consciência de todo problema social daqueles que se igualam a mim pela cor da pele ou pela condição que a cor da pele traz, namoro com mulher “branca” – e isto contradiz, segundo a lógica exposta, a perfeição de minha “militância”, “consciência” e “negritude” ou minha consciência não está completamente “formada”.
            Ora, só há possibilidade de se pensar assim pela adjetivação em mão única e em linha reta. Explico. Por um lado, os adjetivos “negro” ou “preto” somente fazem sentido como designação definidora ao serem elevados à objetividade. E são elevados não por conta da autonomia dos negros/pretos que assim o quiseram; mas pelo desenrolar histórico que submeteu todo o resto à primazia da “cor da pele/condição social” – tal como no sistema de castas. Por outro, toma-se este adjetivo que, por sua objetivação/generalização, agora é um substantivo – O negro, O preto, e, junto a eles, todos os atributos que deveriam, necessariamente, os acompanhar –, como anulador de algumas designações ao mesmo tempo em que valida outras.
Fulana/o preta/o deve, necessariamente, se relacionar, namorar e casar com homens/mulheres pretos/as. A grande questão é que, especialmente os/as pretos/as militantes, intelectualizados, não percebem que há uma gama de adjetivos que somente fazem sentido conjugados: qual mulher preta o homem preto que frequenta balada de pretos, veste-se como preto, tem consciência dos problemas dos pretos, estuda questões relacionadas aos pretos e etc., quer se relacionar? Ora, o que tenho visto, em muitos anos – inclusive entre meus amigos (e que me desculpem o argumento, ainda que eu já o tenha expressado mais de uma vez) , é que há uma primazia de um adjetivo, substantivado, e anulação e afirmação de outros ao mesmo tempo. Quer-se “mulher preta” – mas que seja consciente de sua negritude, seja intelectualizada, goste de coisas de pretos, saiba o que é ancestralidade, que estude questões de pretos, frequente baladas de pretos, tenha orgulho da cor e do cabelo, seja minimamente bonita para os padrões “aceitos”. A mulher preta, gorda, com a pele e os dentes zoados por conta das condições de pobreza, que não tem consciência, ou plena consciência (como a, contraditoriamente, exigida), que não frequenta lugares X ou Y, alisa o cabelo por conta da aceitação social e pela “vergonha” – que é entendível, pelo menos até certo ponto –, enfim, esta mulher não entra na conta. E isto vale para o inverso, da relação mulher-homem[5] (não falarei da homossexualidade por ser outra coisa, mais complexa, e por eu não ter capacidade de argumentar sobre).
         Ora, caso se coloque em linha: gosto/relaciono-me com mulher preta[6] (indireta e internamente está se dizendo:), intelectualizada, consciente, com discurso afiado e etc., e excluem-se todas as outras, inclusive as de cor de pele preta, que não se encaixam nos padrões ou nas “afinidades eletivas” em voga. Caso se exclua a “retidão” – que é a submissão dos outros adjetivos ao adjetivo primordial – e a “mão única”, ter-se-á, somente, um adjetivo a mais que, como os outros, diz pouco: gosto de mulher intelectualizada, que frequente lugares X e Y, que tenha consciência de sua singularidade, que tenha orgulho de si mesma e seja (insira a cor da pele que desejar). Não é o caso, reiterando, de desclassificar ninguém, tampouco reduzir a necessidade de uma consciência acerca do problema. Mas evidenciar que a cor da pele diz pouco ou nada sobre o indivíduo isoladamente. Somente diz sobre ele dentro de uma situação histórico-social específica. Além disso, tal situação histórico-social pode atirar para todos os lados ao condicionar ou mesmo determinar a subjetividade. O “Menino Feriado”, eleito pelo MBL, é uma expressão objetiva disso. Somente poderia se dizer que é um “caso isolado” ou mesmo um exemplo “subjetivo” ao se desconsiderar a formação subjetiva determinada pela objetividade, conjugada à formação objetiva. Somente, então, ao se olhar pelo prisma do sujeito e não do objeto.
Black Panthers: a conjugação da luta contra o racismo
e contra o capitalismo


         Ser Preto/Negro, como substantivo, que subordina os demais adjetivos, é, de um lado, aceitação da condição de afirmação e morte dos próprios indivíduos pretos; por outro, negação da multiplicidade e incapacidade de conceber o racismo como objetivo, como problema social relacionado à luta de classes, e a própria luta de classes ser estigmatizada e relegada – o “Menino Feriado” deixa isso “claro”. É um problema que, concebido da forma tradicional – aquele que parte da primazia da cor da pele/suposta condição social do ser preto[7] –, cai no impasse de afirmar inclusive aquilo que veementemente negaria se não fosse com um(a) preto/preta-protagonista, e cai também no impasse de não se saber o que fazer, de evitar a crítica profunda e dura, de arrumar algum subterfúgio para tocar o problema somente obliquamente, de, por fim, sentir culpa.


       Chegamos ao ponto: o “Menino Feriado” não é uma exceção, mas um sintoma; não é um caso isolado, mas algo objetivo, bem mais complexo do que simplesmente dizer que “a culpa é da sociedade” – como se a sociedade fosse uma entidade à parte. Chegamos ao ponto: relacionar-se somente com negros/as//pretos/as, ou com coisas de negros/pretos, não faz ninguém mais militante contra o racismo e etc.; pode fazer, sim, ser um submisso à estrutura lógica absurda da sociedade tal como se configurou historicamente, ainda que não se tenha consciência da submissão (de fato: muitas pessoas têm boas intenções, são boas militantes e etc., mas isso não anula o fato de que há uma estrutura abstrata dominante que impõe inclusive a lógica de contestação a si própria). Sem o prisma do objeto, sem conceber o sujeito como mediado, é impossível chegar a tais conclusões. Não que elas sejam verdadeiras. Contudo, pretendem dar um nó no raciocínio tradicional e apontar as contradições (popularmente: pôr o dedo na ferida egóica).

O “Menino Feriado”: 
sintoma da história e aporia da
forma tradicional de crítica





[1] Na sociedade de classes e raças – a sociedade brasileira –, há um adjetivo primordial que toma o posto de substantivo (ele designa o indivíduo em sua completude) e que subordina todos os demais, os demais somente fazendo sentido referindo-se a ele. Ex.: o indivíduo é gay, mas tem caráter, é boa pessoa e etc. O “mas” mata toda a intenção pela raiz, na mesma medida em que a totalidade do indivíduo está sob a pecha do “gay”: primeiro ele é gay, depois pessoa – não o contrário, que seria menos “desumano”. Gay se torna uma categoria universal que determina todas as demais. E é universal por uma complexidade do movimento da sociedade, não por si mesma. Não é o fato de alguém ficar com outro alguém do mesmo gênero que define o “ser gay”, mas em que tipo de sociedade e de estrutura de relações sociais, morais e etc., em que isso ocorre que é o determinante.
[2] Ou seja, reduzidos a esta condição não por vontade própria, mas pela “ordem das coisas” na situação histórica.
[3] A história do Brasil, por exemplo, somente se processa e mantém os grupos dominantes no local onde estão por conta de as condições basilares da sociedade continuarem estáticas. Em outras palavras, a história do Brasil – e sua continuidade sem rupturas e transformações profundas na estrutura social –, depende da continuidade dessa fragmentação histórica da sociedade em grupos que aceitam seu “lugar de fala” – que é, por complexo que seja, sua submissão – como aceitação e ratificação – mais passiva.
[4] Em última instância, a morte da subjetividade (da individualidade) depende da afirmação extrema (da vida plena) do individualismo.
[5] O fato de se ter criado um nicho que confere poderes especiais para aquele que se designa como Preto/a, faz a contradição aumentar: o que seria uma mulher qualquer (desconhecida, não-preta) tirar fotos seminua? Ou mesmo se alguma menina preta, mas não intelectualizada, que não ouve Cartola nem sabe quem foi Malcolm X, posasse nua... o que seria feito dela? Tenho lá minhas dúvidas quanto ao cinismo geral instalado – que se tornou a regra de convivência do “bom mocismo militante-loquaz” vigente. O que dizer de homens pretos que deploram aqueles que assumem relacionamento com mulheres brancas mas, na surdina, saem com brancas, apesar de sempre assumirem relacionamentos somente com a “preta padrão” (intelectualizada, consciente e etc.)? Não é o caso julgar ninguém. Porém, cabe romper com o cinismo e com a falsidade, ou, principalmente, com a “interpretação de superfícies” e entrar na coisa, entendê-la e rompê-la, não ficar a mantendo indefinidamente somente para, ainda que inconscientemente, manter seu próprio status.
[6] Para não ficar repetitivo, saiba que vale para o inverso: gosto de homem preto...
[7] Suposta condição social: entra no mesmo argumento. Entende-se, tradicionalmente, que o fato de alguém ser preto lhe dá superpoderes que o confere a capacidade de ter milhares de atributos dentro da sociedade, para o bem e para o mal. 


Subsolo!

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