quarta-feira, 9 de novembro de 2016

Crise de Representação – ou – “Crítica” até o ponto em que se choca com o ego


Um dos pontos altos da atual crítica social é a evocação, consciente ou não, de uma falta de representatividade. Oportunidades não dadas são radicalmente (pelo menos radical em aparência) contestadas. Privilégios escancarados sofrem, igualmente, com comentários negativos. No entanto, há duas dicotomias escondidas: em primeiro, o simples fato de haver representação, concreta ou abstrata, satisfaz o crítico, ou pelo menos amaina sua ferocidade; em segundo, e talvez mais importante, privilégios estruturais que se mantêm, ocultos ou naturalizados – que é pior – servem de aporte para o crítico ao mesmo tempo em que suportam sua posição (des)privilegiada.
Ora, no primeiro caso pode-se pensar no ENEM: uma forma de “romper” com (ou melhor, diminuir) algumas das desigualdades sociais, ainda que seja passível de alta crítica. Para se safar da crítica radical, o próprio sistema, contudo, possui um método curioso: temas “humanizadores” em suas propostas de redação e algumas questões, ou mesmo apenas uma, provindas do mais alto escalão da intelectualidade de esquerda. Neste ano, o caso foi uma questão fundada num dos textos mais importantes – ou talvez mais falados – do século XX: A Indústria Cultural, de Theodor Wiesengrund Adorno e Max Horkheimer. Com a questão proposta, a prova do ENEM recebeu elogios até dos “mais ferrenhos” anticapitalistas. Os temas de redação, igualmente, do ano passado e deste, especialmente, dão férias aos dedos críticos que se esparramam pela suposta esfera pública atual – as redes sociais. Todavia, o que não se pensa do ENEM é sua forma, independente de seu conteúdo, e o que esta forma carrega em si.
Ainda que o ENEM supostamente confira algum tipo de ruptura das desigualdades de acesso ao ensino superior, ele acarreta na degradação da forma do conhecimento – e mesmo na igualação formal de um conhecimento coisificado, que só é conhecimento quando se filia àquilo que está sendo e pode ser, e à forma como é, pensado. Supostamente confere alguma ruptura, pois, por um lado, enriquece o lobby das universidades técnicas, que substituem o antigo ensino médio em “formação” de mão-de-obra barata – portanto, não forma, de modo algum, pensadores e pesquisadores de alto nível –, ao mesmo tempo em que mantém a divisão de classes: seletivamente – mas agora com uma sutileza a mais –, lega as grandes universidades (também elas apodrecidas – contudo, isto é outro assunto) para os de sempre, enquanto os novos atores (majoritariamente pobres) são deixados, mais uma vez, na posição subalterna – entretanto, agora com um toque de classe ascendente que nunca ascende. Por outro, mantém e ratifica a fórmula liberal com ares de “progressismo”. A fórmula é velha conhecida: isolam-se as desigualdades reais para elevar a igualdade formal à universalidade. Um “Exame Nacional do Ensino Médio” que mede os “conhecimentos” adquiridos (sempre supostamente) por estudantes oriundos do segundo ciclo do ensino básico, tanto particular quanto público, deve necessariamente abstrair das desigualdades (que engloba os regionalismos) entre os indivíduos para se efetivar – além de, é claro, “provar” que o ensino público faliu e que a saída para isso é a privatização do mundo! É a fórmula liberal: negam-se processos sociais de engendramento das ultradesigualdades sociais a fim de tratar todos como “iguais perante as 180 questões e uma redação dissertativa”. Mede-se, consequentemente, conhecimentos (mede-se técnica e mecanicamente, diga-se) adquiridos em 3 anos (mais uma vez: supostamente), ainda que de forma abstrata, em 8 horas de prova – diga-se: com a tensão intrínseca à categoria “prova”, com as expectativas de sucesso/fracasso colocados ali, com a suposta possibilidade de ascensão social e, com ela, melhoria de vida e etc.
O ideário liberal que se tornou segunda natureza dos indivíduos, mesmo aos críticos do liberalismo (e de sua forma atual: o neoliberalismo), embrenha-se nas entranhas do processo histórico e o esfacela. O que importa não é a falsidade do processo excludente de uma prova de vestibular – que, diga-se mais, isenta as universidades técnicas dos gastos com vestibular ao substituírem seus próprios processos pelo ENEM; de, também, conquistarem ganhos fixos e avantajados por isenção de impostos por concessão de bolsas de estudos (Prouni) como se fosse “esmola” aos menos favorecidos e etc. –, mas a falta de representatividade: ora! onde já se viu uma prova que não consegue nem mesmo ser plural? Que não considera os pensadores de esquerda e desconsidera o movimento intolerante no mundo (ano passado, tema da redação em torno da questão da mulher e do feminismo; este ano, em torno da intolerância religiosa)! Quando estes entram no jogo, parece que a tal prova foi pluralizada e, de certa maneira, democratizou-se o processo[1].
Numa sociedade na qual, grosso modo, a construção da subjetividade se dá como produção objetiva de sujeitos-empresa[2], que devem investir em si mesmos como mercadoria de valor de uso altamente rotativo e de grande desgaste (por isso a necessidade da constante atualização), torna-se difícil pensar que privilégios sejam privilégios e não produtos de mérito individual. A psique do indivíduo, despreparada para tanta tensão, tende a entrar em colapso diante de grandes frustrações num mundo que não aceita frustrações[3], por menores que sejam. A representação, por um lado e de algum modo, satisfaz o ego desse sujeito-empresa; por outro, a crítica deve satisfazer o ego, não esfacelá-lo – que seria inevitável em caso de uma revolução social[4].
Outro ponto importante do seu discurso [de Fernando Holiday] que constrói o seu fantástico mundo é a ideia da meritocracia. É muito bonito de acreditar que todas(os) têm iguais condições de disputar qualquer espaço na sociedade, sem levar em consideração as profundas desigualdades existentes. O interessante do discurso liberal é que ele desconsidera a história e a trajetória (...). Teoricamente, todas(os) são iguais, têm direitos iguais e isso basta.
No debate das cotas é possível exemplificar bem a fragilidade desse discurso liberal. O vestibular, uma prova de concurso, nada mais é do que um prova com um conjunto de regras e equações e aqueles que estiverem melhor treinados para aqueles padrões são os que têm o melhor desempenho. Nem de longe uma prova como essa mede conhecimento ou capacidade de aprendizagem. Ela apenas reflete os mais bem treinados para aquele padrão de prova. Para quem acredita na meritocracia, o fato de todas(os) concorrentes por uma vaga fazerem a mesma prova, com o mesmo tempo disponível, ou seja, regras bem estabelecidas, já garante uma igualdade de condições e aqueles que obtiverem o melhor resultado são os merecedores.
Porém, se a gente analisar esse mesmo processo seletivo, levando em consideração o contexto histórico e as distintas trajetórias, veremos que vestibulares e concursos são grande funis sociais. Vamos pegar dois exemplos de pessoas com trajetórias bem distintas. A primeira é uma jovem de classe média, que estuda em escola particular pela manhã, que a tarde faz cursinho preparatório para o vestibular, que tem acompanhamento psicológico, que os pais já possuem ensino superior e a estimulam de todas as formas para o aprendizado. A segunda é uma jovem, moradora da periferia, que estuda a noite, pois durante o dia precisa trabalhar para ajudar na renda doméstica, com muito esforço faz um cursinho popular aos sábados. Essa, se passar no vestibular, será a primeira da família a cursar o ensino superior.
Será que quando essas duas trajetórias se encontram para fazer a mesma prova, com as mesmas regras, elas estão em condições iguais? A política de cotas nada mais é do que uma ação que busca diminuir o abismo entre essas trajetórias e garantir oportunidades para aqueles que historicamente foram excluídos. [Grifo meu][5]
Duas coisas: primeiro, qualquer coisa que seja feita sem contestar a estrutura das relações sociais, tais como são produzidas e não somente como são reproduzidas, tende somente a “diminuir o abismo”, sem, no entanto, eliminar as desigualdades, nem mesmo criticá-las efetivamente; em segundo lugar, a meritocracia, tal como manda o ideário liberal conjugado ao “jeitinho” intrínseco ao caráter brasileiro, somente é “ruim” quando não atinge o indivíduo em questão[6]. Basta ver que, para este caso, as mesmas estruturas de relações que eram consideradas excludentes, podem ser, por um passe quase mágico, tidas como inclusivas ou como algum tipo de vitória e “diminuição dos abismos” sociais se forem protagonizadas por “gente da nossa gente”, isto é, caso haja algum tipo de representação. Um passe de mágica, um misterioso salto “qualitativo”, que invejaria qualquer Barão de Münchhausen.
O fato dentro do fato – o fato de haver representação dentro do fato de uma prova que nega processos sociais – amaina a consciência crítica, com sua abstração conciliadora e universalista, que não esquece dos “sempre esquecidos”, e, por fim, consegue adeptos e defensores até entre aqueles que dizem “pensar o processo imanentemente”. Quando a aparência de oportunidades iguais camufla a desigualdade profunda e impõe um simulacro de igualdade, ou contesta, ainda que superficialmente, algumas desigualdades, tudo ok! Basta não apresentar o monstro que sabemos existir e que, contudo, negamos veementemente ao mesmo tempo em que vivemos por ele[7]. As desigualdades permanecem e se ampliam, por fim, e a representatividade se esgota com o bater do sino de “fim de prova”.
Por outro lado, os privilégios escancarados – como esse monstro que alguém ousou emergir – sofrem críticas profundas. Não é o caso de eliminar os privilégios, mas de não os deixar tão aparentes. Como modus vivendi do bom caráter brasileiro, é preciso ser radical na crítica ao privilégio para mantê-lo na realidade efetiva tal e qual, mesmo que inconscientemente e mesmo com uma crítica de boa-fé[8]. Privilégios ocultados na realidade ou aceitos naturalmente, como se não fossem privilégios mas o jeito que a coisa é, são mantidos e estruturam as relações. Não se trata, para voltar ao ENEM, de criar uma prova a mais, supostamente mais democrática; trata-se de eliminar, ou ao menos fazer a crítica necessária, qualquer elemento que reduza os processos desiguais a fatos eivados de igualdade formal.
A crítica só “tem razão” de ser na medida em que há uma crise de representação – e não é isso, exatamente, que aconteceu com o Rap, por exemplo, na virada para o novo século quando as condições miseráveis escancaradas que davam base para as letras e para a militância deixaram de ser escancaradas, ainda que não tenham sumido mas se aprimorado e sutilizado? E não é o que acontece, hoje, com a individualidade pequeno-burguesa-crítica que sofre quando seu ego não é minimamente satisfeito? A crítica ferrenha esbarra, exatamente, na manutenção da estase do ego. Ela perde sua razão de ser – até porque, visto o caráter do ego brasileiro, é mais afetivo-privada que racional-pública – onde pede mudança de tudo, transformação radical da realidade, menos de seu ego. Parece que tudo deve mudar, menos o espaço – psíquico, geográfico, sociocultural –, ultra-arraigado e “zona de segurança e conforto”, do indivíduo que exige mudanças.
Não é o caso, para o ego estático que é barreira para as mudanças bem mais que a suposta “direita fascista”, de, por exemplo, garantir proporcionalmente as vagas das universidades públicas para aqueles que não possuem capacidade econômica de pagar um curso particular, provindos da escola pública e comprovadamente pobres. O caso se dá em garantir, gradualmente – gradualmente, aliás, já se foram algumas gerações que morreram esperando a “evolução gradual” e a redução “gradual das desigualdades” –, o acesso ao ensino superior, e que tal acesso mantenha as distâncias necessárias entre as classes: você, pobre, preto, da periferia, que vá para aquelas “universidades” que não possuem projetos de pesquisa nem de extensão, tampouco produza “parte de uma elite pensante” (e a própria ideia de “elite” deveria ser contestada radicalmente), enquanto nós, abastados de Moema, Perdizes e afins, continuamos com os privilégios que já eram de nossos pais e avós, portanto, naturais. Mesmo o mais marxista, o mais radical, reproduz privilégios em seu microcosmo: filas afetivas para ingresso na pós-graduação, indicações diversas, requisição das compensações sociais também para si e etc.
No fundo, ser representado é diferente de ser alguma coisa, de estar lá, concretamente. O Ecossocialismo foi representado com as propostas de mobilidade urbana em São Paulo (cidade) na gestão Haddad. Mas só para “inglês ver”. Menos emissão de poluentes; pessoas mais dispostas por aliar exercício físico, lazer e locomoção... Todavia, a estrutura perversa do capital, que faz suas maiores vítimas na periferia da periferia do capitalismo, continua a todo vapor, a ferro e fogo, sem descanso, num “moinho de moer gente” – como uma das famosas interpretações do Brasil disse sobre nosso processo histórico. O Ecossocialismo, então, nem entrou na pauta – ainda que uma parte dos críticos do capital glorifiquem alguns tipos de pedaladas.
É fácil dizer que o ENEM dá oportunidades àqueles historicamente prejudicados e excluídos. O difícil é saber onde estão as tais oportunidades num sistema que opera, também pelos privilégios egóicos, pela anulação de quaisquer oportunidades ao mesmo tempo com elas pintadas na parede do cenário como horizonte (im)possível – tal como as nuvens e o sol em O Show de Truman.
As questões que ficam são: o ENEM não é um moinho ultrassutil de moer gente? Ou será que há, por meio dele, alguma possibilidade efetiva, social, de mudança estrutural que não venha com o adjetivo “gradualmente” acoplado? Além do mais, não seria o ENEM uma reprodução do Jeitão brasileiro elaborado historicamente pelas elites, copiado, em versão mais “popular” e “menos criteriosa” (mais “de qualquer jeito”, portanto), para servir de pretexto e “compensação” simbólica para as classes subalternas? Não seria uma cópia popularesca do malfadado vestibular, com o mesmo grau de exclusão, mas com um ar menos “aristocrático”?
O que parece que pega é que a regra, a natureza do sistema, é tanto aceita como natureza mesma, quanto sua forma é preenchida com conteúdos diversos. Isto tanto para acalmar ânimos e manter as coisas como estão, quanto para reproduzir os privilégios entre os privilegiados sem que, contudo, isto fique aparente[9].


[1] E mesmo neste caso, uma parte da sociedade “critica” por conter temas ligados aos “vagabundos” e “esquerdopatas”, ou mesmo por tratar dos direitos humanos que “só defendem bandidos” (mas isto é crítica da esquizofrenia social, não há como tratar aqui).

[2] DARDOT, P.; LAVAL, C. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. Trad. Mariana Echalar. São Paulo: Boitempo, 2016.

[3] KEHL, M. R. O tempo e o cão: a atualidade das depressões. São Paulo: Boitempo, 2009.

[4] O Conceito de revolução, tão desgastado e desacreditado, deve ser lido, aqui, como transformação radical da realidade; isto é, como transformação profunda do modo de produção da sociabilidade e dos indivíduos, não tendo a ver, somente, com a ideia de “guerra de guerrilhas” ou de “revolução proletária” como teorizada no século XX.
Além do mais, é preciso considerar o socialismo como mais que a tomada das mesmas estruturas de poder por parte da classe dos que vivem do trabalho. Aliás, como diferente disso. Não é a contestação dos privilégios burgueses por serem somente da burguesia. É a superação do modo burguês de relações sociais, de relações de produção social da realidade e dos indivíduos em sua totalidade. Foi isso que Marx, para desespero do marxismo tradicional, pensou: transformação radical daquilo que dá bases sólidas para os processos capitalistas, sendo a base mesma um processo especificamente capitalista. Portanto, pensou a superação do modo de produção da realidade, fundado no trabalho abstrato e na forma-trabalho que dá vida à toda objetividade social e à toda subjetividade.

[5] JUNINHO Jr. A meritocracia e o fantástico mundo de Holiday. Disponível em: http://www.almapreta.com/realidade/meritocracia-fantastico-mundo-holiday


[6] Aqui é importante pensar que o nosso jeitinho é produto objetivo de nossa história (do Brasil) de formação da subjetividade. E mais: é preciso pensar que é uma construção dominante legada às classes dominadas que a reproduzem em menor escala. Veja: OLIVEIRA, F. de. Jeitinho e Jeitão: uma tentativa de interpretação do caráter brasileiro. Disponível em: https://blogdaboitempo.com.br/2012/11/12/jeitinho-e-jeitao-uma-tentativa-de-interpretacao-do-carater-brasileiro/

[7] São interessantes os filmes de Sergio Bianchi, especialmente, no referido caso, o seu Cronicamente Inviável (2000), no qual o crítico ferrenho “alimenta” o sistema que critica.

[8] Novamente, Cronicamente Inviável é infalível neste quesito. Além deste, o filme A Causa Secreta (1994), também de Sergio Bianchi, além do conto homônimo de Machado de Assis (no qual o filme é baseado), são exemplares disso.  

[9] Adendo final: por conta da eleição de Donald Trump nos EUA, certa euforia histérica tomou conta dos progressistas. Importa saber que, pelo recorte que propus, a crise de representação toma conta do cenário. O alarmante desespero quanto à eleição de Trump faz parecer, implicitamente, que Hilary Clinton é progressista, seja melhor e mais bem preparada para manusear a máquina. Os iraquianos e palestinos, e migrantes oriundos do Oriente Médio e da América Latina que o digam! Por falta de reflexão e vocabulário chama-se Trump de “fascista”, enquanto a dominação econômica e política feita pelos EUA durante os anos Obama foram ofuscadas por seu carisma e sua cara de bom moço. Não que tenha sido como Trump promete que seja a partir de agora. Mas não estava longe disso. Tinha-se, nessa corrida eleitoral, um projeto radical xenófobo e etc., e um projeto imperialista mascarado de “natureza natural da coisa” (já que, uns mais outros menos, aceitamos o imperialismo contanto que ele se mantenha como está; isto é, tornamo-nos conversadores da desgraça por conta de seu sorriso condescendente). Trump não representa, com sua figura, minoria alguma. Clinton representa a continuidade de uma representatividade negra e, por si mesma, representa mulheres e a continuidade de uma política progressista (mais uma vez, os árabes que o digam!). Crise de representação é pior que crise real. Escamoteia-se a crise real por conta de uma representatividade abstrata. No entanto, a crise real não é deflagrada com a falta de representatividade. E isto é interessante. Trump talvez seja o desfecho real de uma sequência histórica, não uma ruptura radical. Clinton era além de real desfecho, sequência natural na ordem das coisas do Império.

Subsolo!

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