De um ponto de vista dialético – se é que se pode
chamar a dialética de ponto de vista –, a afirmação irrestrita da realidade
efetiva é afirmação da ideologia efetiva. Por um lado, há aqueles que,
ingenuamente ou por má fé e mau caráter, anulam os aspectos “negativos” (do
ponto de vista deles) para afirmarem os “positivos” (idem), colocando a
contradição em suspenso (senão a anulando). Por outro, há os que concorrem com
aberrações o posto de alto comando do lunatismo: também totalizam um aspecto parcial
para fazer valer sua visão desvairada do “mundo” (um mundo à parte, de fazer
inveja ao desenho animado Bob ou a qualquer Stultifera
Navis). Excluindo estes, vejamos até que ponto vai o outro.
O novo lumpemproletariado
acha que pode, a partir de si e somente de si engendrar uma visão crítica da
realidade. Rejeita toda e qualquer autoridade – que seja alteridade em relação a ele – como se, por si só, autoridade
fosse autoritária; renuncia à experiência da adversidade (se é que ainda é
possível) e ao debate crítico profícuo e profundo na medida em que, de um lado,
não satisfaz o ego individual e, de outro, é (pros)elitismo. Só se aceita, por conseguinte,
o que vem de dentro, o que já está dentro, o que já está dado – e dado por si
próprio: na era da “pós-verdade” (sic!), só aceita a autoverdade. A questão, aqui, é que esta – a autoverdade – não é monadológica,
niilista ou algo do tipo: é universal
e universalizada. Sua visão crítica se
dá a partir de suas vivências. Esquece-se, é claro, toda contradição implicada
na ideia de “vivência”: autossuficientes, sem necessidade de distanciamento e
de crítica que vá para além do que já têm como “crítico”, esquecem-se as
mediações da tal vivência. Vivência de quê e como, a partir de quais lentes se olha
e se filtra a realidade – lentes produzidas onde e por quem? A diferenciação
subjetiva (ainda há subjetividade?), a vida supostamente autoalimentada (apenas
por si mesma), vida independente tanto de outros quanto de condicionamentos – salvo pelos
condicionamentos escolhidos pelos próprios autossuficientes e, também, pelo
grupo ao qual se identificam sem prévio aviso, anulando todas as diferenças que
poderiam elevar as contradições à dignidade de seu posto real – esquece-se,
sumariamente, que depende de uma totalidade que permita e que dê condições para
que haja individuação. Só há diferenciação subjetiva sob uma objetividade
específica.
Nenhuma realidade se dá à vivência, ou à
semiexperiência, sem filtros. Isto não quer dizer que sejam “fenômenos”, aquilo
que aparece vindo de uma “coisa-em-si” oculta e inalcançável. Trata-se de não
esquecer as mediações, abstratamente concretas, que condicionam e determinam a
vivência e mesmo a experiência (se é que ainda é possível falar disto!).
Anulam, então, as contradições de si mesmos e de
suas produções (formação? Semiformação?). Invalidam, num golpe mais fatal que de Kill Bill, toda e qualquer mediação
que não seja autocontrolada, isto é, própria (se é que há autonomia para
tanto).
Ora, quando a totalidade – complexa por si só,
extremamente difícil de ser percebida por sua complexidade e por sua produção
como unidade e singularidade aparente (na qual a própria totalidade se anula
para aparecer aos indivíduos como coisa simples e sem mistérios – tal como se
dá na espetacularidade da mercadoria e de sua forma no fabuloso primeiro capítulo de Das Kapital) –, [então, quando
a totalidade] aparece como unidade simples, como manifesta sem mistérios, e
deixa-se ser apreendida sem grande esforço (imagina-se, ao menos), ela já engoliu
por completo aquele não viu nada de ofensivo e bárbaro – tal como naqueles
quadros de crianças, envoltos em lendas aberrantes, que virados de cabeça para
baixo representam (dizem, pois nunca vi nada de mais – talvez por
insensibilidade própria) a alta barbárie da morte pelo monstro. Se é assim, se
a totalidade se esconde e se autoanula para se fazer valer como totalidade – em
todas suas mediações – qual possibilidade de a vivência ser crítica
antecipando-se à totalização do capital e todas suas mediações que coisificam o
indivíduo – mesmo o que tem consciência disso? Qual possibilidade de a vivência
ser produtora do diferente no mundo do sempre-igual? Só um esforço descomunal e
terrível permitiria ao indivíduo perceber toda (auto)coisificação e dominação.
Mas isto demandaria a própria superação de si, ou seja, anulando a ideia de
mônada, de autossuficiência: seria a percepção teórico-prática das
insuficiências e deficiências, e suas
superações, que daria o tom da vivência. A vivência só seria, então, quando
já não existisse mais, quando se tornasse experiência
de formação, ainda que seja formação incompleta por conta das mediações que
a impossibilitam de todo.
A anulação dos aspectos “negativos” (negativos em
sentido não-dialético), faz afirmar um vazio: o que a vivência produziu. Vazio
que, diferente de nada, é repleto de forma: vazio
que é a confluência das mediações da totalidade, que é o ponto de inflexão da
indústria de produção da subjetividade. Vazio que aparece ao indivíduo como
completamente seu todo, como sua
totalidade singular. A realidade que vê “criticamente”
é reflexo de si e ele mesmo é produto alienado do capital. O que vê, e que
não percebe (quase) nunca e cada vez menos, é a própria totalidade que nega sua
existência (duplamente: a totalidade nega a existência dele, ao passo que ele
nega que exista tal totalidade, como um cético sem ceticismo – na medida em que
afirma com todas as letras sua autoverdade –– nesse jogo de forças, não é preciso dizer de qual lado a corda arrebenta). Prescinde-se das mediações: quanto
menos mediada é a visão da coisa, mais nítida sua “verdade” para o eu. As mediações ofuscam. Cabe
retirá-las ou nem trazê-las ao jogo.
Nau dos Loucos
(navegava pelo rio Reno, na
Idade Média, recolhendo toda gama de “loucos”. Dava-se, também, reverência
à “loucura”, certa divinização por não conseguir “compreendê-la”: poderia ser
manifestação dos mistérios
divinos)
Jogado à deriva em um mar sitiado, joguete de uma
mão múltipla que domina invisível, o novo lumpemproletariado,
agarrado à vivência e abdicando e esquecendo tudo aquilo que não lhe convém, afirma
onde deveria negar e nega aquilo que deveria, ao menos, levar em conta. Sua
contravenção ratifica a totalidade dada como se se manifestasse contra ela. O
reconhecimento de si, que exige o outro e dele prescinde, ao mesmo tempo, é a
anulação da individuação pela vivência imediata: é a mediação do sempre-igual
que padece de má-consciência. Quanto mais individualizado o “vivente”, mais
coisificado e igualado ao todo. Proscrevendo o trabalho do negativo na própria Coisa – as contradições que
deveriam suscitar a superação do estado de coisas vigente ou, ao menos, a
consciência sobre tal estado –, anula-se a crítica, afirma-se a Coisa tal como
é: um imenso fetiche da produção (da indústria cultural) capitalista.
A afirmação de si com todas as forças (quais?),
vazias e preenchidas de conteúdo alienado, é a negação mais ferrenha da
possibilidade do próprio si. Quem, se não for por ingenuidade ou mau caratismo,
festeja a “negritude” da mais nova dama inglesa? Prescrevem as mediações ao
ponto de poder afirmar que as revoluções industriais realizaram a superação do
capital pela natureza viva que, agora, se impõe soberana sobre a técnica: Stultifera Navis. Mais poderia a tal “negra”
ser residente do Jardim Europa ou de Moema – ninguém daria conta. Todavia,
vivas ao empoderamento, à sororidade e à identidade! Qual a medida, por outro
lado, para pular as mediações, tal como a mágica do Barão de Münchhausen, a fim
de afirmar (ratificar) o filtro sociocultural da indústria da perversão, da exclusão e da
continuidade – o vestibular – simplesmente “negando” (em aparência) a absorção completa da mercadoria
pela indústria cultural? Vivas à
sobrevivência no inferno! A falta de senso é o pôr completo do eu vazio
(preenchido pela vivência) no objeto para ver apenas a si mesmo refletido nele:
afirmação do eu e da barbárie são a mesma coisa.
O momento no qual se prescinde da divisão de
classes, e se nega tal divisão, é o mesmo (momento) no qual a divisão mais se
impõe e se totaliza como uma das mediações universais: racionais aqueles que aceitam a exclusão pela absorção fetichista
da periferia (que anula, por ser fetichista, a própria ideia de periferia ao usá-la, ao mesmo tempo, como ponto de apoio para mais aprofundamento de sua própria existência sistêmica e totalizadora)? Críticos aqueles que simplesmente
vociferam sem critério, sem eira nem beira, sem perceber o que está por trás? Empoderados aqueles que assumem a
posição subalterna e glorificam um aspecto (vazio e ratificador; mediado e coisificado) como se
fosse a grande vitória? Alguns se “esquecem” das mediações – de como a coisa
chegou ali, qual processo que tem por trás dela – por má-fé: são alertados e
não querem fazer a crítica de fato porque têm medo de suscitar contradição.
Esquecem, igualmente, que suscitar contradição é elevar a contradição ao
patamar digno do nome, é revelar a contradição da Coisa, não do indivíduo (trocando em miúdos: a contradição não é minha, é própria do sistema).
Outros não se dão conta por ingenuidade. Destes, que o mar pelo qual navega a Nau dos Loucos tenha piedade – não terá,
mas não custa anular uma mediação para ficar bonito e dar esperança, afinal,
todo mundo faz isso.
Subsolo!
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