quinta-feira, 24 de maio de 2018

Apontamentos #2


     
De um ponto de vista dialético – se é que se pode chamar a dialética de ponto de vista –, a afirmação irrestrita da realidade efetiva é afirmação da ideologia efetiva. Por um lado, há aqueles que, ingenuamente ou por má fé e mau caráter, anulam os aspectos “negativos” (do ponto de vista deles) para afirmarem os “positivos” (idem), colocando a contradição em suspenso (senão a anulando). Por outro, há os que concorrem com aberrações o posto de alto comando do lunatismo: também totalizam um aspecto parcial para fazer valer sua visão desvairada do “mundo” (um mundo à parte, de fazer inveja ao desenho animado Bob ou a qualquer Stultifera Navis). Excluindo estes, vejamos até que ponto vai o outro.
O novo lumpemproletariado acha que pode, a partir de si e somente de si engendrar uma visão crítica da realidade. Rejeita toda e qualquer autoridade – que seja alteridade em relação a ele – como se, por si só, autoridade fosse autoritária; renuncia à experiência da adversidade (se é que ainda é possível) e ao debate crítico profícuo e profundo na medida em que, de um lado, não satisfaz o ego individual e, de outro, é (pros)elitismo. Só se aceita, por conseguinte, o que vem de dentro, o que já está dentro, o que já está dado – e dado por si próprio: na era da “pós-verdade” (sic!), só aceita a autoverdade. A questão, aqui, é que esta – a autoverdade – não é monadológica, niilista ou algo do tipo: é universal e universalizada. Sua visão crítica se dá a partir de suas vivências. Esquece-se, é claro, toda contradição implicada na ideia de “vivência”: autossuficientes, sem necessidade de distanciamento e de crítica que vá para além do que já têm como “crítico”, esquecem-se as mediações da tal vivência. Vivência de quê e como, a partir de quais lentes se olha e se filtra a realidade – lentes produzidas onde e por quem? A diferenciação subjetiva (ainda há subjetividade?), a vida supostamente autoalimentada (apenas por si mesma), vida independente tanto de outros quanto de condicionamentos – salvo pelos condicionamentos escolhidos pelos próprios autossuficientes e, também, pelo grupo ao qual se identificam sem prévio aviso, anulando todas as diferenças que poderiam elevar as contradições à dignidade de seu posto real – esquece-se, sumariamente, que depende de uma totalidade que permita e que dê condições para que haja individuação. Só há diferenciação subjetiva sob uma objetividade específica.
Nenhuma realidade se dá à vivência, ou à semiexperiência, sem filtros. Isto não quer dizer que sejam “fenômenos”, aquilo que aparece vindo de uma “coisa-em-si” oculta e inalcançável. Trata-se de não esquecer as mediações, abstratamente concretas, que condicionam e determinam a vivência e mesmo a experiência (se é que ainda é possível falar disto!).
Anulam, então, as contradições de si mesmos e de suas produções (formação? Semiformação?). Invalidam, num golpe mais fatal que de Kill Bill, toda e qualquer mediação que não seja autocontrolada, isto é, própria (se é que há autonomia para tanto).
Ora, quando a totalidade – complexa por si só, extremamente difícil de ser percebida por sua complexidade e por sua produção como unidade e singularidade aparente (na qual a própria totalidade se anula para aparecer aos indivíduos como coisa simples e sem mistérios – tal como se dá na espetacularidade da mercadoria e de sua forma no fabuloso primeiro capítulo de Das Kapital) –, [então, quando a totalidade] aparece como unidade simples, como manifesta sem mistérios, e deixa-se ser apreendida sem grande esforço (imagina-se, ao menos), ela já engoliu por completo aquele não viu nada de ofensivo e bárbaro – tal como naqueles quadros de crianças, envoltos em lendas aberrantes, que virados de cabeça para baixo representam (dizem, pois nunca vi nada de mais – talvez por insensibilidade própria) a alta barbárie da morte pelo monstro. Se é assim, se a totalidade se esconde e se autoanula para se fazer valer como totalidade – em todas suas mediações – qual possibilidade de a vivência ser crítica antecipando-se à totalização do capital e todas suas mediações que coisificam o indivíduo – mesmo o que tem consciência disso? Qual possibilidade de a vivência ser produtora do diferente no mundo do sempre-igual? Só um esforço descomunal e terrível permitiria ao indivíduo perceber toda (auto)coisificação e dominação. Mas isto demandaria a própria superação de si, ou seja, anulando a ideia de mônada, de autossuficiência: seria a percepção teórico-prática das insuficiências e deficiências, e suas superações, que daria o tom da vivência. A vivência só seria, então, quando já não existisse mais, quando se tornasse experiência de formação, ainda que seja formação incompleta por conta das mediações que a impossibilitam de todo.
A anulação dos aspectos “negativos” (negativos em sentido não-dialético), faz afirmar um vazio: o que a vivência produziu. Vazio que, diferente de nada, é repleto de forma: vazio que é a confluência das mediações da totalidade, que é o ponto de inflexão da indústria de produção da subjetividade. Vazio que aparece ao indivíduo como completamente seu todo, como sua totalidade singular. A realidade que vê “criticamente” é reflexo de si e ele mesmo é produto alienado do capital. O que vê, e que não percebe (quase) nunca e cada vez menos, é a própria totalidade que nega sua existência (duplamente: a totalidade nega a existência dele, ao passo que ele nega que exista tal totalidade, como um cético sem ceticismo – na medida em que afirma com todas as letras sua autoverdade  nesse jogo de forças, não é preciso dizer de qual lado a corda arrebenta). Prescinde-se das mediações: quanto menos mediada é a visão da coisa, mais nítida sua “verdade” para o eu. As mediações ofuscam. Cabe retirá-las ou nem trazê-las ao jogo.  

Nau dos Loucos
(navegava pelo rio Reno, na Idade Média, recolhendo toda gama de “loucos”. Dava-se, também, reverência à “loucura”, certa divinização por não conseguir “compreendê-la”: poderia ser manifestação dos mistérios divinos)

Jogado à deriva em um mar sitiado, joguete de uma mão múltipla que domina invisível, o novo lumpemproletariado, agarrado à vivência e abdicando e esquecendo tudo aquilo que não lhe convém, afirma onde deveria negar e nega aquilo que deveria, ao menos, levar em conta. Sua contravenção ratifica a totalidade dada como se se manifestasse contra ela. O reconhecimento de si, que exige o outro e dele prescinde, ao mesmo tempo, é a anulação da individuação pela vivência imediata: é a mediação do sempre-igual que padece de má-consciência. Quanto mais individualizado o “vivente”, mais coisificado e igualado ao todo. Proscrevendo o trabalho do negativo na própria Coisa – as contradições que deveriam suscitar a superação do estado de coisas vigente ou, ao menos, a consciência sobre tal estado –, anula-se a crítica, afirma-se a Coisa tal como é: um imenso fetiche da produção (da indústria cultural) capitalista.
A afirmação de si com todas as forças (quais?), vazias e preenchidas de conteúdo alienado, é a negação mais ferrenha da possibilidade do próprio si. Quem, se não for por ingenuidade ou mau caratismo, festeja a “negritude” da mais nova dama inglesa? Prescrevem as mediações ao ponto de poder afirmar que as revoluções industriais realizaram a superação do capital pela natureza viva que, agora, se impõe soberana sobre a técnica: Stultifera Navis. Mais poderia a tal “negra” ser residente do Jardim Europa ou de Moema – ninguém daria conta. Todavia, vivas ao empoderamento, à sororidade e à identidade! Qual a medida, por outro lado, para pular as mediações, tal como a mágica do Barão de Münchhausen, a fim de afirmar (ratificar) o filtro sociocultural da indústria da perversão, da exclusão e da continuidade – o vestibular – simplesmente negando” (em aparência) a absorção completa da mercadoria pela indústria cultural? Vivas à sobrevivência no inferno! A falta de senso é o pôr completo do eu vazio (preenchido pela vivência) no objeto para ver apenas a si mesmo refletido nele: afirmação do eu e da barbárie são a mesma coisa.
O momento no qual se prescinde da divisão de classes, e se nega tal divisão, é o mesmo (momento) no qual a divisão mais se impõe e se totaliza como uma das mediações universais: racionais aqueles que aceitam a exclusão pela absorção fetichista da periferia (que anula, por ser fetichista, a própria ideia de periferia ao usá-la, ao mesmo tempo, como ponto de apoio para mais aprofundamento de sua própria existência sistêmica e totalizadora)? Críticos aqueles que simplesmente vociferam sem critério, sem eira nem beira, sem perceber o que está por trás? Empoderados aqueles que assumem a posição subalterna e glorificam um aspecto (vazio e ratificador; mediado e coisificado) como se fosse a grande vitória? Alguns se “esquecem” das mediações – de como a coisa chegou ali, qual processo que tem por trás dela – por má-fé: são alertados e não querem fazer a crítica de fato porque têm medo de suscitar contradição. Esquecem, igualmente, que suscitar contradição é elevar a contradição ao patamar digno do nome, é revelar a contradição da Coisa, não do indivíduo (trocando em miúdos: a contradição não é minha, é própria do sistema). Outros não se dão conta por ingenuidade. Destes, que o mar pelo qual navega a Nau dos Loucos tenha piedade – não terá, mas não custa anular uma mediação para ficar bonito e dar esperança, afinal, todo mundo faz isso.

Subsolo!


sábado, 5 de maio de 2018

Apontamentos #1



          De tudo que é efêmero, o mais palpável é o sentimento da morte. É o mais palpável e, contraditoriamente, o mais fugaz, esfumaçado. Todo prédio que cai leva consigo um pedaço da persistência. Não a persistência do concreto: a persistência do tabu. Nada fica, nada teima em permanecer e cumprir seu papel. De tudo que estava, nada havia que tenha permanecido, que não tivesse já o destino da fumaça. Estava, pois as coisas apenas estavam. Estavam, pois a coisas nunca mais se deram no presente. O luto, que deveria cumprir seu papel psíquico, persistir e alterar a configuração do todo pelo momento, é tabu: “tabu não é morrer; tabu é a morte”. Esta mesma que se esmaga, que se esvai na abstração do que valia mais: o higienismo e sua reprodução massiva na profusão sempre-igual dos milhares de discursos, ou a transferência da culpa, ela em sua disseminação vazia que só revela o que tem dentro dos indivíduos – o que tem dentro, não a interioridade. E o que se tem dentro passa de reprodução? Mas, reprodução de quem, de quê? Pouco importa. O luto não persiste, tampouco cumpre seu papel: a face humana da morte morreu antes dela mesma.
        Vários tiros ou o corpo arrastado em via pública – ou o corpo sumido por instância pública... Nada vale. E mesmo se valesse, valeria como mercadoria. O paradoxo está dado: valer ou não valer, that’s the question! E não se culpe o outro, bourgeois ou citoyen. A efemeridade é doença também do “crítico”. O anjo da história olharia para frente – duplamente atônito: o passado já não está mais atrás das costas. “Tabu não é morrer. Tabu é a morte!”

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          Estado de exceção? Quando? Onde? Quem não sabe definir, define. Só com uma mordaça se poderia definir exceção – ou sem ela, tanto faz. Quanto menos exceção, quanto mais naturalidade em tudo, mais exceção. O Estado de exceção não é poder não falar; ao contrário, é falar só o que se pode – e o que se pode nem sempre é identificável imediatamente. A “seriedade bovina” é mais realização da exceção que a mordaça.

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         Dia 05 de maio. Quem ainda lê Marx é um gênio – leitor gênio de gênio. E ser gênio não é para qualquer um. Tanto é que ele, há 150 anos, passava 10 horas se esfolando com os livros na biblioteca pública de Londres – menos aos domingos, quando passeava com as filhas, aquelas mesmas para quem lia toda noite, Shakespeare de preferência, antes de dormirem. O primeiro rascunho sério de O Capital, os Grundrisse, datam de 10 anos antes da primeira edição do volume 1 do dito cujo. Gênio! Gênio? Será? Fôlego, paciência, persistência, Trabalho – com T. Quem define o gênio nunca foi leitor seriamente. Quem se define gênio nunca se deu conta que o cosmo não é o próprio umbigo – ou o eu, que dá no mesmo.
         O sujeito mais difamado de, pelo menos, 150 anos para cá, teve e tem poucos leitores que o levaram a sério. Parvoíce und cretinice! Sim, é assim que se define. Pois crítico é quem lê, interpreta, sua em cima do texto e do pensamento. Quem difama – consequentemente sem ter lido nada além da capa, nem orelha! – não pode ser dito crítico. Gênio? Risos. Viva os 200 anos do primeiro crítico sério da banalidade sistematizada. Luto ou festejo? Pouco importa: dia 06 ninguém mais se lembrará de nada.

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      Um corpo que cai – só em Hitchcock! Reprodução à exaustão. Discursos efusivos. Os “sensíveis” fazem o mesmo jogo dos brutos: quem entra na ciranda tem de cirandar. Quem fez a ciranda? Só a abstração sabe. Efusivos, parvos, títeres. Quem entra na roda, roda. E como roda. O jogo não se supera com gol, mas com a superação do campo. Se um corpo cai, um espírito deveria se cindir. Mas o verbo no futuro do pretérito anula desde antes a ação. O corpo cai, se desfaz no concreto armado em fogo. O concreto? Só a abstração dominante prevalece. Alguns chamam pelo nome da mediação, obliquamente: especulação. Outros criam todo tipo de “teoria” – reprodução? – para justificar seus próprios eus. O que fica... bem, o que fica é o que antes já estava: pouco importa o que se deu. Mesmo os daqui – os “sensíveis” – justificam a barbárie – basta ver os perfis sorridentes que em luto permanecem sorridentes. “Morrer não é tabu. Tabu é a morte”. A forma mercadoria permanece igual e faz o meio de campo de tudo: ela produz, também, a sua forma de consumo – frise-se: ela produz – o resto é predicado quase banal. Tabu? É a morte!  

Subsolo!