As duas últimas
décadas do século XX, pelo menos no Brasil, foram duras, pelo menos para a maior parte da população, para as
periferias e margens do “Brasil profundo”.
Por um lado, na
década de 1980 o projeto de crescimento econômico típico do período militar demonstrava
sua verdadeira face. Tinha “dado errado” e o Brasil caíra num profundo abismo
do fim de um ciclo, abismo inflacionário, de alto índice de desemprego e
baixíssimo de “desenvolvimento social”. A “abertura democrática” se dá mais por
conta do esgotamento desse “modelo” do que por pressão social ou mesmo por “iluminação
humanista” que clamaria pelo fim dos absurdos de uma ditadura militar. Por
outro lado, na década de 1990 desemboca-se a tragédia econômica do Brasil. Já
em seu início, o inflacionamento grotesco da economia – resquício de uma
política econômica falida – traz consigo a “revitalização” do que de pior havia
no período anterior (ditadura militar) e que, às avessas do que se tinha
pensado, não fora removido da cena com a “abertura” em 1985: o recrudescimento
da força violenta militar, para “inibir” o crescimento da violência física por
conta da insatisfação e miséria econômica, visando “manter a ordem” (a mesma
ordem, mas agora com outra máscara); e, ainda, revitaliza também a falta de
investimento em estruturas compensatórias da miséria que a fariam, ao menos,
ser contida.
Além disso, no
decorrer da mesma década, o Estado passa a se isentar cada vez mais em relação
às suas responsabilidades perante a sociedade civil, isentando-se dos meandros
da economia. O período FHC atesta isso não somente com privatizações de
empresas estatais, mas também pela diminuição quase total da intervenção do
Estado nos assuntos econômicos de interesse público.
Esta é a década
do Rap, a “música de protesto” da periferia. Não uma rememoração daquela música
das décadas passadas (1960-1970) que protestava a partir de uma classe média
culta e minimamente “bem alimentada” contra a ditadura. O Rap, assim como o
samba de Bezerra da Silva outrora, era a expressão legítima das periferias, em
todos os aspectos. Poesia “pesada” aos ouvidos pois dizia exatamente o que a
maioria sentia, mas não queria ouvir. Da denúncia dos descasos do Estado e suas
intervenções armadas à miséria corrente e o racismo desvairado e mortífero, o
Rap só pôde existir nesse contexto, fruto de processo histórico que possibilitou
seu surgimento nesse formato.
Com a virada de
milênio há a virada política: com saída de cena dessa política de isenção quase
total, entra outra que, apesar das continuidades em alguns aspectos, visa
intervir no âmbito social fortalecendo o Estado e redistribuindo as “riquezas”
para a/na sociedade civil (redistribuição: seja como for, independente das
formas que tenha sido e etc., não é disso que trata o texto). Tal virada
política fomenta mudanças na sociedade antes inatingíveis e inimagináveis. A
política social é amplamente renovada (insisto: seja como for!) e a sociedade,
os indivíduos periféricos/marginalizados são incluídos, mesmo que a reboque, na
ordem. Aqui reside o cerne do problema sócio-político brasileiro: a ordem, bem
ou mal, continua a mesma, ainda que “deformada” pela inclusão de marginais (não
entenda, caro leitor amigo, marginal como “fora-da-lei”), e, desse modo, a
própria inclusão se dá em vias de criar condições para que tais indivíduos
sejam inseridos. Estas condições, criadas, inserem indivíduos não como
cidadãos, mas como consumidores plenos:
consumidores de educação (ou o que se vende com esse nome), de status, de
cultura (ou o que quer que seja), de informação (ainda que vendida como “conhecimento”)
e etc.. Isso fomenta, de modo mais profundo, uma mentalidade de
indivíduo-coisa. Não é nem o indivíduo pleno, autônomo, nem é mais aquele a que
falta subjetividade por conta da miséria quase total (não só econômica), aquele
que é mais um algo do que uma pessoa, já que sem acesso a nada falta,
inclusive para si, a dignidade de pessoa. Tal mentalidade é, de modo breve, a
redução de todos os aspectos da vida ao consumo de aparências. Em outras
palavras, é o consumo de um estilo de vida (ainda que não real) que possa ser
amplamente visto, cobiçado, invejado, que possa demonstrar riqueza por meio da
aparência, ainda que no âmbito privado esse mesmo indivíduo passe fome,
alimente-se mal e etc..
A “redistribuição”
de renda – seja por meio da diminuição da pobreza e do desemprego, seja pelo
melhoramento de serviços e políticas sociais – criou um boom na ordem de consumo de bens e, principalmente, na busca de um
estilo de vida previamente estabelecido. Por meio da busca desvairada pela
aparência, este estilo é a cópia imperfeita do status fictício da boa vida da
classe média. No entanto – apenas para problematizar um pouco, já que não é
esse o foco do texto –, este status fictício começa a mostrar sua face real:
sua podridão interna desde antes existente e, agora, cada vez mais agarrado em
suas aparências, fomentando outro boom:
o da violência simbólica (e também física), na tentativa de manter a ficção, o
agarramento neurótico a um estado de coisas nunca existente realmente mas
mantido como status simbólico.
Não é mais a
década do Rap ou da música “consciente” e de protesto (como explosão por meio
do grito do oprimido). Da mesma forma que a classe média sempre ostentou seu
suposto poder e status de forma clara e aparente, a “nova” classe média (pelo
menos simbolicamente) tende a ostentar, de modo ainda mais abissal: sem todo o “glamour” dos “bem criados”. Não se trata de viver bem, mas aparentar muito
bem isso. Não se trata, tampouco, de ter poder: trata-se de demonstrar isso da
maneira que for possível, ainda que falso. O que a classe média não aceita é
fruto do recalque (ou mesmo da inveja), da “perda” dos seus “privilégios”
particulares, que lhe diferenciava da “grande massa”, da ralé. Como todo
consumo por aqui se reduz ao consumo de status, aparência, de ideias e não
simplesmente de coisas concretas, e, ainda, toda a vida é reduzida a esses
aspectos, o próprio protesto por “inclusão” some, pois se efetiva. Quase todos,
agora, de uma forma ou de outra, foram incluídos na ordem, nivelando por baixo –
pela coisificação – o quê e como deve ser vivido ou entendido como “boa vida”. Não é mais a década do Rap: é a década da
música (ou seja o que for) de ostentação. O “Funk ostentação” é uma
consequência – trágica – do processo histórico desse período. E, ainda, ele
possui uma “vantagem” (por meio de
suas próprias desvantagens) em relação aos outros tipos de “música” (ou de “artes”):
a vantagem de ser direto, que é fruto de sua desvantagem (uma vantagem
pequeno-burguesa) de ser “sútil”. “Músicos” renomados da indústria cultural são
tanto mais carregados de ostentação do que os meninos e meninas funkeiros das
periferias. A diferença é que aqueles possuem um status de “berço” (são classe
média “de verdade”), coisa que estes, os funkeiros, não possuem, já que são na
maioria pretos e periféricos, não são sutis nem “cultos”.
O que deve ficar
claro é que as manifestações culturais, ainda que coisificadas, não são
criações “do nada” e menos ainda frutos da “cabeça vazia” de alguns. São culturais, isto é, resultados de processos
históricos. O século XXI não começa em 2001: seu início se dá bem antes,
remonta pelo menos à década de 1980. Enquanto a classe média ostenta títulos
acadêmicos, músicos “cultos”, viagens à Paris, a “nova” classe média ostenta a
si própria, o que ela é na realidade efetiva, por mais que isso coadune com sua
aparência e no fim se reduza a ela.
É o que se tem pra hoje.
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirCaramba!! Texto show!! Completo e cheio de história! !
ResponderExcluirParabéns! ! Acrescentou muito em minha vivência! !
Grata!
Opa! Obrigado você por ter lido. :D
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