Não há prática sem
teoria, da mesma forma que não há teoria sem práxis. A prática sem teoria, ou embasada em pseudoteoria possui limitações que não podem ser vistas por aqueles
que aderem a este viés. Alienada das condições de si mesma, a “atitude” que
reivindica prática acima de tudo – e prescindindo de tudo – não consegue
conceber os muros que cria para si: sua falsa infinidade é sua limitação – no espaço
e no tempo – mais ferrenha. Por outro lado, a teoria que não se imbrica com a
prática, como processo, está aquém de toda História:
sucumbe à sua inação e ao seu pessimismo. Não basta dizer que “o mundo não
tem jeito”. Este tipo de afirmação é ignorante duplamente: primeiro, ignora sua
composição histórica que decorre do passado, do presente e das projeções;
segundo, é inativa por sua unilateralidade
intrínseca. Neste caso, é unilateral na medida em que quer organizar o mundo no/através
do pensamento sem perceber suas contradições e, consequentemente, deixando de
lado o fato de que o pensamento é duplo: produto e produtor. Ele só é sujeito crítico na medida em que se entende como
objeto entre objetos, isto é, ao
passo em que se sabe parte do movimento da história social. “Parte do movimento”, não “primeiro-motor”
isento e plenamente autônomo. Sua unilateralidade, nesse sentido, é fruto de
uma perspectiva limitada e condicionada pela ideologia dominante. Esta
ideologia quer que se diga, ininterruptamente, que “o mundo não tem jeito”,
exatamente para que permaneça do jeito que está.
Por sua vez, prática
“sem” teoria é possível, mas também limitada. Que teoria e prática não se
desligam não quer dizer que a teoria preceda a prática em tudo. Contudo, uma
prática sem teoria está “aberta” a qualquer interpretação na mesma medida em
que já possui sua interpretação do mundo – ainda que seja de forma inacabada ou
mesmo inconsciente. Isto indica que não há prática sem teoria: toda prática
parte, mesmo sem saber, de alguma concepção (ainda que débil) sobre os modos de
organização do mundo. Cabe aos indivíduos, coletivamente, reivindicar, numa
correlação de forças políticas, a interpretação “mais adequada” e hegemônica
para determinada prática. A prática, indeterminável em sua completude por
excelência, sempre ficará aberta a novos rumos dependendo da teoria (ainda que
inconsciente) intrínseca ao seu processo. Assim, a crítica não é “teórica” no
sentido tradicional. Uma crítica – ainda que teoria crítica – já é prática na medida em que depende de uma
determinada maneira de conceber os processos sociais. Ela só é crítica ao se
compreender objeto social mais que sujeito: ao se saber inserida no movimento
da sociedade e receber forte influência dele. E só é crítica na medida em que
se compreende sujeito mais que objeto: ao se saber produtora do movimento da
sociedade e ter forte influência e determinação sobre ele. Abrir mão de uma das
vias querendo privilegiar a outra é sucumbir à “teoria tradicional”: a prática
e a teoria se coisificam mais a mais ao mesmo tempo em que pensam ser somente
sujeito social.
As teorias vigentes
são, ainda que não queiram e detestem tal fato, ideológicas por caírem na
armadilha que, “criticamente”, condenam. O nó se dá no seguinte: na compreensão
de que as coisas (fatos sociais) se
bastam a si mesmas; que tudo que “são” é o que aparece imediatamente; que a “forma
concreta” das coisas, aquela que “é” no tempo e no espaço, isola-se dos demais “fatos”
e ignoram completamente aquilo que consideram “(teórica e praticamente) abstrato”.
Sua astúcia é sua cova profunda. Pensar a prática – e agir a prática – é, ainda que não mova um galho do chão no “aqui e
agora”, romper com a ilusão capitalista
de que as coisas são fatos isolados e devem ser resolvidos pelo que
imediatamente se concebe através da “teoria” (e por “teoria”, aqui, pode-se
entender qualquer concepção, mais ou menos organizada, de pessoas comuns; não
depende de “teóricos de escritório” – tal como aquela mesma “crítica” tenta diminuir
aqueles que “não possuem a vivência prática cotidiana do fato”).
A prática crítica
não pode prescindir de uma perspectiva da
totalidade social, tampouco pode abrir mão das mediações sociais. De um lado, a totalidade social se faz presente
em qualquer “fato isolado”. De outro, os “fatos isolados” são mediados pelas
categorias centrais da totalidade. Em palavras mais simples, uma prática
crítica na atualidade não deveria prescindir da forma da luta de classes, da
reificação, da capacidade do capital de organizar sua composição ao
desorganizar a sociedade (no plano da aparência) e fragmentar a sociabilidade
(como se cada “coisa”, cada “fato” não tivesse relação alguma com os demais). Não
há “interesse humano” que se sustente concretamente sem levar em conta os
vieses de classe no qual se fundamenta; não há, assim, interesse “da humanidade”
se não se considerar de qual lado, em qual “bloco”, está: do lado do capital ou
do trabalho (assalariado, alienado etc.). Em outros termos: não há como pensar
num interesse comum para capitalistas (que exploram e dominam) e para aqueles
que vivem da venda da força de trabalho (que são explorados e dominados – mesmo
que não percebam ou não queiram). Ao mesmo tempo, não há como intentar pensar
criticamente uma situação particular como se não dissesse respeito à totalidade
das relações. Por exemplo: o problema de determinado grupo social excluído não
poderá ser superado – ainda que conquiste avanços mais ou menos significativos –
caso não seja pensado dentro de um todo que organiza (ainda que pareça
desorganizar) e mantém “as coisas como estão”. O “fato” é mediado pela
totalidade social: o que “é” só é na medida em que há uma sociedade que produz
e absorve sua existência; somente existe enquanto existem condições que
mantenham esse “é”. Não há como pensar, por exemplo, a situação atual das
escolas de SP (a possível reorganização e etc.) sem se levar em consideração os
interesses de classe (da classe dominante, especialmente), nem os interesses do
capital (que reorganiza a sociedade a seu bel-prazer, e, ainda, não é
completamente controlado pela classe dominante).
Pensar a prática
nestes termos, e mais ainda pensar a “reorganização escolar” proposta e a práxis crítica dos estudantes é ter de
considerar que, ainda que não seja muito elaborado nem mesmo completamente
consciente, eles sabem que as
proposta de fechamento das escolas (e na reorganização dos ciclos) possuem
interesses maiores, não só do governador, mas de mais gente que se beneficiaria
com isso – sejam beneficiários diretos ligados à educação ou mesmo alheios a
ela. Mesmo assim, a prática, até para ser organizada de forma político-crítica,
impõe para si a necessidade de se pensar para além do imediato, ou seja,
precisa ser teoricamente fundamentada. E é aqui que entram no jogo dois
fatores: primeiro, a questão de que a escola, em particular, e a educação, em
geral, não se detêm em si mesmas, são problemas históricos e sociais do Brasil,
tanto no que tange à educação como à formação das relações sociais
generalizadas; segundo, surgem os grupos que irão propor os rumos do “movimento”,
tanto grupos “externos” à educação quanto os próprios estudantes envolvidos
diretamente que terão de pensar para além desse “momento isolado”. De alguma
forma, os estudantes estão mostrando a possibilidade – e a necessidade! – de se
pensar a escola e a educação de outra forma, rompendo paradigmas e propondo
novas formas de relacionamento social (tal como aqueles que pintaram as escolas
ocupadas, capinaram, fizeram saraus, encontros, debates e etc.). Uma das
grandes vitórias já em curso é a proposição que diz que outra forma de
relacionamento humano é possível.
O pensar crítico e o
agir crítico necessitam um do outro na mesma medida em que nascem unidos. Mesmo
que aparentemente um venha à tona antes do outro, ou mesmo aparentemente
prescindam do outro, isto não quer dizer que estão isolados ou não exista a
conexão. E esta conexão é mais profunda na medida em que revela as contradições
e problemas totais de uma sociedade organizada em determinados moldes. Pensar e
agir criticamente acerca de qualquer situação é apontar para sua (possível) superação.
E isso só se dá na medida em que se leva em consideração relações sociais
mediando umas as outras; isto é, que as relações se fazem conjuntamente e
determinam-se mutuamente pois possuem um “denominador comum”.
Subsolo!
No play: BeatPete– Vinyl Session Part#19