A
violência se dá como forma. No caso
do Brasil recente, ela está posta sobre o desenvolvimento da capacidade de
disposição de consumo.
A
era pós-ditadura militar foi cunhada por um clima de instabilidade, tanto
econômica e social, quanto política e cultural. Os desenvolvimentos cultural e
social forjados na ditadura militar se desenrolam, às vezes não tão direto ou
claro, até os dias de hoje. Em relação à política, há ainda um amálgama de
colonialismo, de violência do Estado (que vem, ressaltando, de tempos de
outrora, tanto da formação do Brasil nos séculos anteriores, quanto da ditadura
militar recente), de mando desenfreado, de um espaço público (ou de um tipo de
relacionamento social) decorrente dos modos de constituição e andamento da
antiga casa-grande.
Esta
instabilidade é transmutada quando uma transformação mais ou menos silenciosa
se instaura na política social a partir de 2002. No âmbito social, um tipo de
capitalismo “especial” toma a cena: um “capitalismo puro” – já que não possuidor
de resquícios feudais ou do “antigo regime” (para aludir a Paulo Arantes em seu
Novo Tempo do Mundo) –, ao qual a “burguesia”
deveria agradecer, já que este tipo de direção do Estado salvaguarda um
desenvolvimento econômico de longe muito mais seguro que os “modelos”
anteriores, e, ainda, ideológico na medida em que sustenta este desenvolvimento
na promoção assistencial e outros domínios da política social. Silenciosa,
pois, tal mudança não aparece de maneira brusca, não causa estardalhaço (isto
é, pelo menos não esta transformação, mas a “opinião pública” provoca um
alvoroço tremendo em cima de fantasmas e assombrações criados pela própria
opinião pública, tanto ideológica quanto ingênua). Todavia, ainda que não fosse
a “intenção consciente” assegurar uma economia estabilizada a partir de uma
sociedade aparentemente estabilizada,
esse modo de governo alastrou e garantiu tal estabilidade por meio de uma
violência, também silenciosa, que
reduziu tudo à identificação com a forma
do consumo. Violência, pois, a redução de tudo
à forma do consumo é a restrição e a identidade, mesmo daquilo que não é e não
deveria ser idêntico, ao modo de “oferta-procura”. De um e outro lado, toda a
formação humana, complexa e múltipla, é restringida ao modo de consumo: o tempo
que se passa com o filho, por exemplo, é pautado pela forma do consumo – ou o
indivíduo se abstém da educação e a substitui por algo que pode ser “pago” (e,
por isso mesmo, possui existência imediata e satisfaz imediatamente), ou trata
do filho na forma do “negócio”, como
um investimento em médio ou longo prazo (poderia ficar elencando várias
situações aqui: não é a intenção; por meio desse exemplo limitado, pode-se
compreender e pensar em todas as situações possíveis em torno disso). Toda
relação humana (ou social, caso se queira) é reduzida a este imperativo da
forma-consumo. A violência desse tipo de relação é a violência da reificação,
portanto, é uma violência da produção da sociedade e das
subjetividades (deformadas) e não somente violência de uma “consequência”
social natural, da “circulação”: trata-se, primeiro, do consumo como produtor e
não como consumo de algo já produzido. Em outras palavras, a forma do consumo não se dá na “livre
escolha” do que pode ser consumido (comprado etc.), ou de um consumo como algo decorrente de outro campo (da produção
material, por exemplo). Tal como uma propaganda (um “comercial”) não é feita
para vender um “produto material”, visível e palpável, mas, antes de tudo, vender
(no imperativo: impor) um modo ou
estilo de vida, de comportamento e etc. (vende-se, na propaganda, uma ideia, o produto pouco importa), o
consumo não é algo concreto, mas abstrato: é um modo de existir e que tende a
se transformar no único modo de
existir. Reduz, portanto, toda existência à identidade da forma-consumo; produz
toda a existência por meio dessa forma.
Na
mesma medida contraditória em que “melhora” a vida singular de cada um de nós
(principalmente dos mais pobres), este tipo de manutenção e produção da
existência social, por meio de uma política sócio-econômica que alia de forma
ímpar a política social com o crescimento econômico capitalista[1],
destrói a possibilidade de uma formação cultural, social, humana, em que seja
possível o diferente como diferente:
por mais que na aparência o diferente exista, ele só ganha existência social e
efetiva ao se igualar, ao se identificar ao todo. Mesmo a “contestação” e a oposição
ao sistema, ou às suas designações, são engolidas, sem o saber, por esta identidade: à forma-consumo. O diferente, aqui, só é diferente quando é igual. A deterioração da existência humana
(e não entendamos humano como algo romântico, um apelo a uma “época de ouro”) é
evidente: tudo que é humano, que é reivindicado como tal, não é mais humano;
ou, de outra forma, só é humano na medida em que se iguala à coisa, ao
movimento peculiar da coisa (da coisificação): na medida em que é, portanto,
movimento de produção e de “compra e venda”. Tudo deve ser consumido, inclusive
a si mesmo – e, portanto, tudo deve ser imediato.
Consumido da mesma forma de consumo
do objeto de “desejo” imposto (“imposto”: mas que aparece sob a forma da
liberdade irrestrita) pela ordem vigente.
A
ordem de consumo destrói não somente a educação e a formação cultural
tradicionais, em suma, a “vida tradicional”. Destrói, junto, (quase) toda possibilidade de construção autônoma do humano por sua
própria atividade (destrói e joga a práxis
para o domínio do romantismo messiânico – NOTA: sobre este aspecto, o texto Notas marginais sobre teoria e práxis,
de Theodor W. Adorno, é interessante). Esta destruição é violenta e não poderia
deixar de ser: ela aparece como construção, como formação, e aí está sua
violência mais perversa.
[1] É importante lembrar que, até o
fim do século XX, a tentativa de manter uma política social se dava, quase
sempre, à revelia do desenvolvimento econômico; isto é, “investir” em programas
sociais era, inevitavelmente, onerar programas econômicos de crescimento
capitalista. Ainda que não esteja em “estado de graça”, em perfeição, o
governo Lula e sua continuidade (governo Dilma), são a expressão mais nítida
disso. Aliás, não é por acaso que o Brasil vem tomando cada vez mais lugar e
posição no mundo competitivo global. O que parece é que, ainda, aqueles que
tentam entender a “fórmula Brasil” e aplicá-la, não se deram conta dessa
equação singular (e, digamos, única) entre política social e política
econômica.
Subsolo!
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