sábado, 20 de dezembro de 2014

Sobre Violência: Esboço 2


A violência se dá como forma. No caso do Brasil recente, ela está posta sobre o desenvolvimento da capacidade de disposição de consumo.
A era pós-ditadura militar foi cunhada por um clima de instabilidade, tanto econômica e social, quanto política e cultural. Os desenvolvimentos cultural e social forjados na ditadura militar se desenrolam, às vezes não tão direto ou claro, até os dias de hoje. Em relação à política, há ainda um amálgama de colonialismo, de violência do Estado (que vem, ressaltando, de tempos de outrora, tanto da formação do Brasil nos séculos anteriores, quanto da ditadura militar recente), de mando desenfreado, de um espaço público (ou de um tipo de relacionamento social) decorrente dos modos de constituição e andamento da antiga casa-grande.
Esta instabilidade é transmutada quando uma transformação mais ou menos silenciosa se instaura na política social a partir de 2002. No âmbito social, um tipo de capitalismo “especial” toma a cena: um “capitalismo puro” – já que não possuidor de resquícios feudais ou do “antigo regime” (para aludir a Paulo Arantes em seu Novo Tempo do Mundo) –, ao qual a “burguesia” deveria agradecer, já que este tipo de direção do Estado salvaguarda um desenvolvimento econômico de longe muito mais seguro que os “modelos” anteriores, e, ainda, ideológico na medida em que sustenta este desenvolvimento na promoção assistencial e outros domínios da política social. Silenciosa, pois, tal mudança não aparece de maneira brusca, não causa estardalhaço (isto é, pelo menos não esta transformação, mas a “opinião pública” provoca um alvoroço tremendo em cima de fantasmas e assombrações criados pela própria opinião pública, tanto ideológica quanto ingênua). Todavia, ainda que não fosse a “intenção consciente” assegurar uma economia estabilizada a partir de uma sociedade aparentemente estabilizada, esse modo de governo alastrou e garantiu tal estabilidade por meio de uma violência, também silenciosa, que reduziu tudo à identificação com a forma do consumo. Violência, pois, a redução de tudo à forma do consumo é a restrição e a identidade, mesmo daquilo que não é e não deveria ser idêntico, ao modo de “oferta-procura”. De um e outro lado, toda a formação humana, complexa e múltipla, é restringida ao modo de consumo: o tempo que se passa com o filho, por exemplo, é pautado pela forma do consumo – ou o indivíduo se abstém da educação e a substitui por algo que pode ser “pago” (e, por isso mesmo, possui existência imediata e satisfaz imediatamente), ou trata do filho na forma do “negócio”, como um investimento em médio ou longo prazo (poderia ficar elencando várias situações aqui: não é a intenção; por meio desse exemplo limitado, pode-se compreender e pensar em todas as situações possíveis em torno disso). Toda relação humana (ou social, caso se queira) é reduzida a este imperativo da forma-consumo. A violência desse tipo de relação é a violência da reificação, portanto, é uma violência da produção da sociedade e das subjetividades (deformadas) e não somente violência de uma “consequência” social natural, da “circulação”: trata-se, primeiro, do consumo como produtor e não como consumo de algo já produzido. Em outras palavras, a forma do consumo não se dá na “livre escolha” do que pode ser consumido (comprado etc.), ou de um consumo como algo decorrente de outro campo (da produção material, por exemplo). Tal como uma propaganda (um “comercial”) não é feita para vender um “produto material”, visível e palpável, mas, antes de tudo, vender (no imperativo: impor) um modo ou estilo de vida, de comportamento e etc. (vende-se, na propaganda, uma ideia, o produto pouco importa), o consumo não é algo concreto, mas abstrato: é um modo de existir e que tende a se transformar no único modo de existir. Reduz, portanto, toda existência à identidade da forma-consumo; produz toda a existência por meio dessa forma.
Na mesma medida contraditória em que “melhora” a vida singular de cada um de nós (principalmente dos mais pobres), este tipo de manutenção e produção da existência social, por meio de uma política sócio-econômica que alia de forma ímpar a política social com o crescimento econômico capitalista[1], destrói a possibilidade de uma formação cultural, social, humana, em que seja possível o diferente como diferente: por mais que na aparência o diferente exista, ele só ganha existência social e efetiva ao se igualar, ao se identificar ao todo. Mesmo a “contestação” e a oposição ao sistema, ou às suas designações, são engolidas, sem o saber, por esta identidade: à forma-consumo. O diferente, aqui, só é diferente quando é igual. A deterioração da existência humana (e não entendamos humano como algo romântico, um apelo a uma “época de ouro”) é evidente: tudo que é humano, que é reivindicado como tal, não é mais humano; ou, de outra forma, só é humano na medida em que se iguala à coisa, ao movimento peculiar da coisa (da coisificação): na medida em que é, portanto, movimento de produção e de “compra e venda”. Tudo deve ser consumido, inclusive a si mesmo – e, portanto, tudo deve ser imediato. Consumido da mesma forma de consumo do objeto de “desejo” imposto (“imposto”: mas que aparece sob a forma da liberdade irrestrita) pela ordem vigente.
A ordem de consumo destrói não somente a educação e a formação cultural tradicionais, em suma, a “vida tradicional”. Destrói, junto, (quase) toda possibilidade de construção autônoma do humano por sua própria atividade (destrói e joga a práxis para o domínio do romantismo messiânico – NOTA: sobre este aspecto, o texto Notas marginais sobre teoria e práxis, de Theodor W. Adorno, é interessante). Esta destruição é violenta e não poderia deixar de ser: ela aparece como construção, como formação, e aí está sua violência mais perversa.  



[1] É importante lembrar que, até o fim do século XX, a tentativa de manter uma política social se dava, quase sempre, à revelia do desenvolvimento econômico; isto é, “investir” em programas sociais era, inevitavelmente, onerar programas econômicos de crescimento capitalista. Ainda que não esteja em “estado de graça”, em perfeição, o governo Lula e sua continuidade (governo Dilma), são a expressão mais nítida disso. Aliás, não é por acaso que o Brasil vem tomando cada vez mais lugar e posição no mundo competitivo global. O que parece é que, ainda, aqueles que tentam entender a “fórmula Brasil” e aplicá-la, não se deram conta dessa equação singular (e, digamos, única) entre política social e política econômica. 


Subsolo!

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