segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

Sobre Violência: Esboço 3

A educação seria, para alguns, o domínio privilegiado para a contraposição à violência: a superação desta poderia advir deste âmbito. Em contrapartida, é uma esfera por meio da qual a violência se manifesta diluída, bruta, silenciosa (pelo menos na forma), mas com aparência de seu contrário: como liberdade, como campo central por onde uma espécie de emancipação poderia se tornar efetiva.
A asserção famosa de Adorno: “para que Auschwitz numa mais se repita”, era um apelo para que aquele tipo de experiência ganhasse o primeiro plano na formação cultural (social, política e etc.) após os campos de concentração, impedindo seu retorno. Um apelo para que a educação fosse pensada (e agida) na contramão da violência, no fomento da experiência da superação de qualquer situação que pudesse desembocar no genocídio e etc.. No entanto, a sociedade da segunda metade do séc. XX já estava de tal modo “corrompida” pela instrumentalização de tudo que mesmo a consideração da experiência trágica perdera sua força na roda trituradora do imediatismo: tal como, hoje, a morte nos causa “espanto” somente no minuto imediato, a experiência, seja ela qual for, não tem o poder formativo que, claro, demandaria tempo para a “digestão”, tempo do “luto”, no sentido de um tempo necessário para a “incorporação, experimentação e superação” de qualquer experiência.    
Por um lado, a educação “formal” perde sentido ao “adquirir” (ser subsumida) o sentido da sociedade. O ensino básico torna-se uma ponte, um caminho chato mas necessário, para objetivos “mais nobres” (isto é, padronizados previamente): o ensino público, especialmente para as classes pobres, é um “sem-sentido”, uma passagem que não tem serventia. No máximo, é um momento do processo que se pudesse ser anulado, seria – pois, no fundo, é anulado no momento mesmo em que é efetivado. Um momento da vida das crianças e jovens que serve de, especialmente o ensino médio, para o ingresso no “mercado de trabalho”, mas não sem antes, para alguns, passar por alguma instituição que lhes confira os créditos necessários para tanto: instituições de “ensino” superior, que, por sua vez, também constituem um momento carente de sentido porém necessário para o ingresso nesse cenário atual que a cada dia mais se torna a “primeira natureza”. Para a classe média e as mais altas, o ensino básico é um momento de preparo para a vida adulta – vida adulta já pré-programada, tal como, por sua vez, pré-programa a vida infantil e juvenil – isso sem falar das ramificações “padronizantes”: curso de inglês, natação, judô, aula particular disso e daquilo e etc.. O ensino público é um “depósito nonsense” de crianças que para lá são mandadas por pais que, por sua vez, também não sabem de sentido algum, mas se desobrigam perante o Estado de sua função familiar. O ensino privado, ainda que seja parecido em algumas determinações, é a “escolinha básica de padronização e ratificação do ‘capital cultural’ familiar”, isto é, serve como etapa necessária, mas desimportante, para a vida adulta [NOTA: quanto a isso, veja Pierre Bourdieu em seus textos sobre educação: Escritos de Educação].
A educação é uma forma de consumo de mão dupla: como o consumo está diluído, como forma, em todas as determinações da existência subjetiva e objetiva, a educação é um negócio no qual se consomem dados e informações da mesma maneira que se consome tecnologia – isto para não dizer do imediatismo e da contingência, da “desnecessidade” do que é consumido; é consumo, também e por outro lado, da própria humanidade (ou o que restaria dela), consumo como “anulação”, como subjugação da subjetividade na tentativa de uma “reconciliação”, de uma identificação harmônica com a objetividade social: a escola anula a subjetividade ao formar subjetividade (coisificada). Professores e pais também entram nessa roda; não são, ao contrário do que argumentariam alguns, os “salvadores” dentro desse processo: “também o educador precisa ser educado” (Marx: 3ª Tese Sobre Feuerbach). A universidade, salvo poucos domínios, também entra nessa roda.
A “desobrigação familiar da educação”, por outro lado, é fruto direto do desenvolvimento histórico que pode ser resumido em duas características: a dissolução da família tradicional – tradicional no sentido não só da agregação nuclear mas de sua função social, e que, não obstante, possui um sentido peculiar no Brasil – e isso aparece como perda de referências que antes pareciam fixas [NOTa: nada indica que este tipo era melhor em algum aspecto; isto é uma constatação sociológica apenas]; redução da educação familiar à forma do consumo, do investimento como negócio, da anulação do sentimento de perda [isto é, da anulação da capacidade de “perder”, de ouvir “não” – NOTA: há um texto, da Maria Rita Kehl, na coletânea Mutações, intitulado “Depressão e imagem do novo mundo”, que é interessante neste sentido], da transferência da “obrigação” familiar a outros âmbitos – é claro que, como já dito, isto é também fruto da incapacidade da família, seja ela qual e como for, de orientação e criação de laços mais “íntimos” e próprios. Este tipo de perda da referência da atividade educativa (formativa) no núcleo da família é, portanto, fruto do desmembramento do tipo burguês de constituição familiar e da subsunção dos indivíduos que deveriam educar (os “pais” num sentido bem amplo) ao movimento objetivo da sociedade coisificada. Hoje, uma “família” transfere suas responsabilidades, consciente ou inconscientemente, a terceiros. Estes “terceiros”, por sua vez, reproduzem a objetividade social que, aliás, é reproduzida pela própria família como núcleo de “transmissão” de dados culturais e etc. conforme são “educados” pelas mídias (especialmente) e pelo próprio movimento efetivo e dominador da sociedade.  [NOTA: “família”, reiterando, pode ser uma avó, uma tia, um parente qualquer ou às vezes nem mesmo parente: considero “família”, aqui, como aqueles que vivem sob o mesmo teto – mas nem sempre – e que possuem algum tipo de responsabilidade moral e legal uns sobre outros. Ainda sobre família, é interessante o desenvolvimento que Jürgen Habermas faz, principalmente nos capítulos IV e V de Mudança Estrutural da Esfera Pública, no qual liga a decadência da esfera pública à decadência da família de tipo burguês].
Em última instância, a educação familiar é substituída por “drogas” (em sentido lato): da ritalina aos desenhos animados “educativos” (formadores de subjetividade), do consumo desenfreado à glorificação do “ganho”, da conquista individual mediada pelo dinheiro e pelo status que advém disso. Os celulares e computadores – claro está: a internet – possuem mais “respeito” perante as crianças e jovens (e porque não adultos?) do que os próprios responsáveis morais e legais. [NOTA: quanto a isso, dois documentários do Instituto Alana são interessantes: Criança, a alma do negócio e Muito Além do Peso – ambos sobre consumo e formação na infância].

Em suma, a educação ratifica a coisificação na mesma medida em que, aparentemente, poderia libertar; mas ratifica a violência de coisificação como aparência de seu contrário: a educação formal serve para entrar no “mercado de trabalho” e se dar bem por aí (a proliferação de cursos tecnológicos ou de cunho técnico-instrumental, além da grande procura por cursos que garantem status e bons salários, tais como Direito, Medicina e etc., têm raízes nisso), e isso significa perseguir a liberdade e a felicidade – contudo, somente como promessa. [NOTA: importante notar que a promessa, a esperança, constituinte da vida ocidental como um todo desde os gregos, coloca a liberdade e a felicidade humana sempre num lapso de tempo em relação ao presente: é sempre um futuro, mas um futuro que não está distante do presente e, todavia, nunca se realiza. O capitalismo, em seu movimento consciente ou não, opera com isso].


Subsolo! 

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