A
educação seria, para alguns, o domínio privilegiado para a contraposição à
violência: a superação desta poderia advir deste âmbito. Em contrapartida, é
uma esfera por meio da qual a violência se manifesta diluída, bruta, silenciosa
(pelo menos na forma), mas com aparência de seu contrário: como liberdade, como
campo central por onde uma espécie de emancipação poderia se tornar efetiva.
A
asserção famosa de Adorno: “para que
Auschwitz numa mais se repita”, era um apelo para que aquele tipo de experiência
ganhasse o primeiro plano na formação cultural (social, política e etc.) após
os campos de concentração, impedindo seu retorno. Um apelo para que a educação
fosse pensada (e agida) na contramão da violência, no fomento da experiência da
superação de qualquer situação que pudesse desembocar no genocídio e etc.. No
entanto, a sociedade da segunda metade do séc. XX já estava de tal modo
“corrompida” pela instrumentalização de tudo que mesmo a consideração da
experiência trágica perdera sua força na roda trituradora do imediatismo: tal
como, hoje, a morte nos causa “espanto” somente no minuto imediato, a
experiência, seja ela qual for, não tem o poder formativo que, claro, demandaria
tempo para a “digestão”, tempo do “luto”, no sentido de um tempo necessário
para a “incorporação, experimentação e superação” de qualquer experiência.
Por
um lado, a educação “formal” perde sentido ao “adquirir” (ser subsumida) o
sentido da sociedade. O ensino básico torna-se uma ponte, um caminho chato mas
necessário, para objetivos “mais nobres” (isto é, padronizados previamente): o
ensino público, especialmente para as classes pobres, é um “sem-sentido”, uma
passagem que não tem serventia. No máximo, é um momento do processo que se
pudesse ser anulado, seria – pois, no fundo, é anulado no momento mesmo em que
é efetivado. Um momento da vida das crianças e jovens que serve de,
especialmente o ensino médio, para o ingresso no “mercado de trabalho”, mas não
sem antes, para alguns, passar por alguma instituição que lhes confira os
créditos necessários para tanto: instituições de “ensino” superior, que, por
sua vez, também constituem um momento carente de sentido porém necessário para
o ingresso nesse cenário atual que a cada dia mais se torna a “primeira
natureza”. Para a classe média e as mais altas, o ensino básico é um momento de
preparo para a vida adulta – vida adulta já pré-programada, tal como, por sua
vez, pré-programa a vida infantil e juvenil – isso sem falar das ramificações
“padronizantes”: curso de inglês, natação, judô, aula particular disso e
daquilo e etc.. O ensino público é um “depósito nonsense” de crianças que para lá são mandadas por pais que, por
sua vez, também não sabem de sentido algum, mas se desobrigam perante o Estado
de sua função familiar. O ensino privado, ainda que seja parecido em algumas
determinações, é a “escolinha básica de padronização e ratificação do ‘capital
cultural’ familiar”, isto é, serve como etapa necessária, mas desimportante,
para a vida adulta [NOTA: quanto a isso, veja Pierre Bourdieu em seus textos
sobre educação: Escritos de Educação].
A
educação é uma forma de consumo de mão dupla: como o consumo está diluído, como
forma, em todas as determinações da existência subjetiva e objetiva, a educação
é um negócio no qual se consomem dados e informações da mesma maneira que se
consome tecnologia – isto para não dizer do imediatismo e da contingência, da
“desnecessidade” do que é consumido; é consumo, também e por outro lado, da
própria humanidade (ou o que restaria dela), consumo como “anulação”, como
subjugação da subjetividade na tentativa de uma “reconciliação”, de uma
identificação harmônica com a objetividade social: a escola anula a
subjetividade ao formar subjetividade (coisificada). Professores e pais também
entram nessa roda; não são, ao contrário do que argumentariam alguns, os
“salvadores” dentro desse processo: “também
o educador precisa ser educado” (Marx: 3ª Tese Sobre Feuerbach). A
universidade, salvo poucos domínios, também entra nessa roda.
A
“desobrigação familiar da educação”, por outro lado, é fruto direto do
desenvolvimento histórico que pode ser resumido em duas características: a
dissolução da família tradicional – tradicional no sentido não só da agregação
nuclear mas de sua função social, e que, não obstante, possui um sentido
peculiar no Brasil – e isso aparece como perda de referências que antes pareciam
fixas [NOTa: nada indica que este
tipo era melhor em algum aspecto; isto é uma constatação sociológica apenas];
redução da educação familiar à forma do consumo, do investimento como negócio,
da anulação do sentimento de perda [isto é, da anulação da capacidade de “perder”,
de ouvir “não” – NOTA: há um texto, da Maria Rita Kehl, na coletânea Mutações, intitulado “Depressão e imagem do novo mundo”, que
é interessante neste sentido], da transferência da “obrigação” familiar a
outros âmbitos – é claro que, como já dito, isto é também fruto da incapacidade
da família, seja ela qual e como for, de orientação e criação de laços mais “íntimos”
e próprios. Este tipo de perda da referência da atividade educativa (formativa)
no núcleo da família é, portanto, fruto do desmembramento do tipo burguês de
constituição familiar e da subsunção dos indivíduos que deveriam educar (os “pais”
num sentido bem amplo) ao movimento objetivo da sociedade coisificada. Hoje,
uma “família” transfere suas responsabilidades, consciente ou
inconscientemente, a terceiros. Estes “terceiros”, por sua vez, reproduzem a
objetividade social que, aliás, é reproduzida pela própria família como núcleo
de “transmissão” de dados culturais e etc. conforme são “educados” pelas mídias
(especialmente) e pelo próprio movimento efetivo e dominador da sociedade. [NOTA: “família”, reiterando, pode ser uma
avó, uma tia, um parente qualquer ou às vezes nem mesmo parente: considero “família”,
aqui, como aqueles que vivem sob o mesmo teto – mas nem sempre – e que possuem
algum tipo de responsabilidade moral e legal uns sobre outros. Ainda sobre
família, é interessante o desenvolvimento que Jürgen Habermas faz,
principalmente nos capítulos IV e V de Mudança
Estrutural da Esfera Pública, no qual liga a decadência da esfera pública à
decadência da família de tipo burguês].
Em
última instância, a educação familiar é substituída por “drogas” (em sentido
lato): da ritalina aos desenhos
animados “educativos” (formadores de subjetividade), do consumo desenfreado à
glorificação do “ganho”, da conquista individual mediada pelo dinheiro e pelo
status que advém disso. Os celulares e computadores – claro está: a internet –
possuem mais “respeito” perante as crianças e jovens (e porque não adultos?) do
que os próprios responsáveis morais e legais. [NOTA: quanto a isso, dois
documentários do Instituto Alana são interessantes: Criança, a alma do negócio e Muito
Além do Peso – ambos sobre consumo e formação na infância].
Em
suma, a educação ratifica a coisificação na mesma medida em que, aparentemente,
poderia libertar; mas ratifica a violência de coisificação como aparência de
seu contrário: a educação formal serve para entrar no “mercado de trabalho” e
se dar bem por aí (a proliferação de cursos tecnológicos ou de cunho técnico-instrumental,
além da grande procura por cursos que garantem status e bons salários, tais
como Direito, Medicina e etc., têm raízes nisso), e isso significa perseguir a
liberdade e a felicidade – contudo, somente como promessa. [NOTA: importante notar que a promessa, a esperança, constituinte da vida ocidental como um todo desde os
gregos, coloca a liberdade e a felicidade humana sempre num lapso de tempo em
relação ao presente: é sempre um futuro, mas um futuro que não está distante do
presente e, todavia, nunca se realiza. O capitalismo, em seu movimento consciente
ou não, opera com isso].
Subsolo!
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