Especialmente
em sua chamada fase de maturidade, Marx encontrou a expressão precisa para
designar a produção abstrata de toda
realidade: trabalho morto. Produção
abstrata não porque seja incognoscível ou mesmo fruto do pensamento (algo
metafísico); antes, por conta de sua capacidade de se abstrair, de se deslocar
da concretude das ações “visíveis” dos Homens; capacidade de coordenar todo o
plano concreto e das ideias sem que se identifique com nenhum conteúdo concreto
ou ideia em particular. O “trabalho que morreu” é aquele que passou; contudo,
passou sem ter ido embora: a síntese do “trabalho vivo”, isto é, resultado da
atividade prática concreta dos indivíduos, permanece. Esta “síntese” não deve
ser entendida como “criatura econômica” (como objetos concretos de consumo
criados por trabalhadores que puseram suas capacidades físicas e mentais nestes
objetos; como “produto” que pode ser comprado a dinheiro, em suma, como se
fosse restrita ao plano econômico). Antes, o trabalho morto é toda atividade
formativa humana que se objetivou –
saiu da pretensa subjetividade dos indivíduos e se “cristalizou” no plano
objetivo, na sociedade –, atividade formativa de todas as instâncias da vida
dos humanos. Em suma, a sociedade é um processo histórico: ela é criada pela
atividade produtivo-formativa dos humanos se relacionando entre si dentro de
uma dada sociedade e, por sua vez – também como consequência lógica –, formando
esta sociedade na mesma medida em que são formados por ela.
Todavia,
o trabalho morto, na sociedade capitalista, possui uma peculiaridade: ele não é
trabalho do indivíduo que passou; é, além disso, trabalho morto objetivo,
abstrato, deslocado das capacidades dos indivíduos, caso tomados isoladamente,
desde o princípio. A soma dos trabalhos (ou das capacidades de trabalho) dos
indivíduos singulares não resulta em trabalho abstrato, em trabalho total ou
objetivo. Podemos pensar em um exemplo razoavelmente simples: a produção seja
do que for – imaginemos, por exemplo, uma linha de produção de automóveis – não
ocorre pela soma dos trabalhos passados dos indivíduos tomados isoladamente (trabalho
objetivado ou morto, atividade que se tornou um objeto – por ex: uma roda ou um
pára-brisa) que quando somados uns aos outros desemboca em um produto final
pronto. Isto até pode parecer real se esquecermos o outro lado do processo. O
que deve ser feito – o produto como um todo; neste caso, o carro – já foi projetado por algum sujeito, isto é,
alguém já “pensou” como e o quê deve ser feito. Esse alguém é um sujeito que
possui a capacidade de dominar o processo como um todo, seu ritmo, andamento,
seus detalhes e etc.. Se todos os trabalhadores juntassem suas capacidades e as
partes que fazem (desde o gerente ou gestor, o pessoal do RH, até os
trabalhadores braçais da linha de produção), ainda assim ficaria faltando
alguma coisa – que impediria de se chegar ao produto final. Esta “coisa” que
falta é a capacidade de controlar o
processo como um todo, capacidade de antecipar o que deverá ser feito e
etc.. Como o indivíduo isolado não possui a capacidade de dominar o processo,
pressupõe-se que a somatória dos indivíduos que ali trabalham – formando um
“trabalhador total” – pudesse ter pleno domínio. A coisa que falta os faz não
ter esse domínio pleno. A inversão propiciada no capitalismo se dá em colocar a
imagem da realidade nos indivíduos,
enquanto a realidade mesma lhes escapa. O trabalhador total é sobrepujado pelo
automovimento do capital: o capital, neste processo, aparece como sujeito consciente que se sobrepõe e
determina o andamento dos supostos sujeitos trabalhadores (caso se queira,
pense em como o ritmo de trabalho é determinado pelo ritmo da máquina e não, ao
contrário, o trabalhador quem determina o ritmo dela; ou mesmo como o “mercado”
determina o ritmo e a quantidade de produção e produtividade de um dado ramo –
por exemplo, mesmo um trabalhador “autônomo” depende das flutuações do mercado,
dos investimentos na ciência e, por conseguinte, do desenvolvimento tecnológico,
depende da demanda, da “moda” e etc.. Aliás, não determinamos nem mesmo o tempo
e o ritmo de nossas caminhadas). Existe um sujeito na sociedade capitalista, e
este sujeito não se assemelha a nenhuma classe social ou indivíduo: sujeito = capital ou trabalho abstrato [NOTA: deve-se, portanto, entender trabalho como
atividade de formação das relações sociais, dos indivíduos, do tipo de relações
econômicas, afetivas, intelectuais e do conhecimento, enfim, atividade humana
que forma – produz – tudo no mundo
humano, inclusive as ideias; em suma, produz os próprios humanos].
O
trabalho abstrato é propriedade alienada aos humanos: é propriedade de um
sujeito abstrato. Por ser formador de toda a sociedade (e isto se limita à
sociedade capitalista, “nossa” sociedade), ele toma para si a capacidade de pôr
aquilo que deveria ser posto pelos indivíduos, raiz de toda a sociedade humana:
as relações sociais. Os encontros humanos têm como síntese (resultado) a
relação social. Os indivíduos se encontram e formam suas relações, (deveriam)
determinar como elas se darão, seus ritmos e etc.; no entanto, essa capacidade
de determinar o que devemos fazer (e ser) não é mais um atributo humano, não é
mais consequência “natural” dos encontros entre indivíduos, resultado autônomo
de suas livres decisões. É o capital que põe e repõe as relações humanas, pois
toma para a si a síntese de toda a sociedade: as relações sociais. [NOTA: se Experiência e Pobreza, de Walter
Benjamin, foi um dos maiores textos da primeira metade do século XX, O trabalhador total, criado pelo capital com
força de realidade, mas que é falso, de Oskar Negt e Alexander Kluge, é um
dos maiores textos da segunda metade do século].
A
violência do trabalho morto é a violência radical que os mortos impõem aos
vivos. Enterrar os mortos, tal como diz Marx, é destruir a situação de opressão
histórica; é, se quisermos interpretar, destruir tudo que já passou mas ainda
permanece assolando e dominando o presente e retomar as rédeas da vida. Em outra passagem, esta na Introdução à crítica da filosofia do direito
de Hegel, Marx diz que ser radical é
ir até a raiz, e a raiz dos problemas do humano é o próprio humano, e isto
implica na questão que a sociedade burguesa (entenda-se: não somente a
burguesia) impõe aos humanos uma forma de dominação radical. A raiz da
forma-violência é a forma de relação
social imposta pelo automovimento do capital. É neste sentido que a produção da sociedade pela Indústria
Cultural expressa todo conteúdo inumano das relações sociais. Inumano =
violência em sua forma mais poderosa: abstrata. De certa forma, o que Adorno e
Horkheimer fazem é desvendar o que Marx já havia colocado. Em primeiro lugar,
compreendem que a categoria trabalho, em Marx, não é uma categoria de simples
relação com a natureza; antes, é categoria de fundação das relações sociais. No
capitalismo é forma-trabalho, isto é,
os modos de relação entre humano-natureza e humano-humano possuem determinações
que estão fora do controle humano e se prostram no domínio do automovimento do
trabalho abstrato. O que Marx já havia colocado é que toda a sociedade, e não
somente a economia (tal como entendem os maus leitores de Marx, tanto liberais
quanto o marxismo mecanicista), é produzida por esta forma. A indústria cultural é a forma em que o
trabalho abstrato aparece “fora” da fábrica: é como ela, a forma-trabalho,
alienada aos Homens, produz todas as relações
complexas que se dão na sociedade (isto é, todas as relações além das
simplesmente econômicas). Esta produção é violenta na medida em que é alienada
(alheia, pertencente a um outro inumano); na medida em que toma dos indivíduos
a capacidade de socialização, de realização de suas humanidades no encontro com
outros indivíduos, capacidade tomada e reposta por uma entidade abstrata e morta que determina o andamento dos “vivos”
(“vivos”, entre aspas, pois sabe-se lá o que seria, de fato, ser e estar vivo;
ou seja, vida humana não se resume, ou não deveria se resumir, ao processo
biológico). Em outro sentido, a morte mesma, em sentido lato, assola os vivos
como uma assombração: “o
prazer da vida está sujeito a censuras públicas muito mais rigorosas do que o
prazer da violência, da tortura e da matança.” (Oskar Negt, Matar não é tabu. Tabu é a morte, p. 161).
Toda violência tem suas
raízes na violência da produção da
humanidade dos indivíduos. Se os indivíduos são produzidos por uma
abstração violenta, nada impede que eles sejam violentos. A violência da
indústria cultural é a violência que se instala no âmago dos indivíduos e os
faz tratar tudo com o ritmo da indústria, ritmo do trabalho abstrato (e isto
inclui as relações mais íntimas, com o corpo do outro, por exemplo, que não é
visto para além do objeto de consumo imediato). Ela, a indústria cultural, é a
instrumentalização de tudo, otimização e maximização de todas as relações “humanas”
(otimização e maximização que se dá, sem rodeios, na esfera da produção industrial
e do consumo, onde tudo deve evitar o desperdício e visar o lucro mais alto). Destarte,
se a violência aparece como forma-consumo, ela somente pode surgir desta
maneira na medida em que é produzida
assim. E a raiz, onde ela é produzida, está incrustada na terra infértil do
trabalho morto alienado.
Somos violentos sem o
perceber; e somente pode ser assim por que a violência aparece como seus
contrários (como justiça, autonomia, liberdade e etc.); e isto se dá pelo fato
de sermos produzidos pela forma-violência como se fosse a “forma natural”.
Subsolo!
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