O
processo cultural de formação da objetividade e das subjetividades desencadeado
pelo trabalho abstrato tende a identificar
tudo à imagem da objetividade social, em suma, à imagem abstrata da
dominação. Em outras palavras, a sociedade regida pelo capital tende a não
deixar espaço para diferenças
fundamentais, deixando, contudo, tudo com aparência de diferente: dominação
perfeita não se dá pela coação, mas pela aparência plena de liberdade. Esta
aparência se sustém, pois, junto a ela, todo o processo social é reduzido às
escolhas do indivíduo isolado, isto é, o fracasso, a culpa, o ganho, a
felicidade e etc., dependem das opções do indivíduo – tudo que diz respeito à
existência individual, depende somente do indivíduo, toda a carga histórica é
esvaziada e seu peso jogado nas costas do indivíduo isolado. Com isso, o
indivíduo deve caminhar sozinho, com suas próprias pernas. E seu caminho vai se
realizando na medida em que ele vai se identificando com o que já está dado. Em
outros termos, o indivíduo “evolui”, “progride”, se aproxima da “liberdade” e
da “felicidade” quanto mais aceita e incorpora a padronização já previamente
programada, todavia, à revelia dele; quanto mais ele se coaduna, se reconcilia
com objetividade da sociedade que, não obstante, aparece a ele como natural. Identificar
é reificar, padronizar na medida em que a imagem do indivíduo vai tomando forma
cada vez mais nítida no reflexo da objetividade social. Isto poderia parecer
que a sociedade vai se conformando ao indivíduo, que ela vai se amoldando para
se adaptar às necessidades dele: a verdade é exatamente o contrário [NOTA:
sobre identidade, ou melhor, sobre não-identidade, tratei no texto Versando sobre a não-identidade,
aqui no blog em novembro].
Toda
identificação é reduzida a uma forma
(se se quiser, um padrão, algo projetado previamente). Podemos entender esta
forma como a capacidade de consumo, capacidade de consumir tudo e todos de modo
mais otimizado possível: forma-consumo.
Tudo tende a se reduzir ao consumo como anulação do outro. Isto implica que o
indivíduo não consome somente objetos, mas os objetos formam um meio para a
sobreposição ao outro, para rebaixar o outro, em uma palavra, o consumo cria a
subjetividade do indivíduo. No entanto, esta subjetividade é criada antes mesmo
do indivíduo se dar conta dela. Ela é adquirida
pelo indivíduo na medida em que ele a consome: a subjetividade não está
nele, mas pode ser dele mediante a compra.
Mais uma vez, a subjetividade já está dada no mercado das ilusões, e o indivíduo não tem outra escolha do que
escolher uma para si. Mas uma que é sempre a mesma que qualquer outra, que o reduz à roda do consumo. Escolher é
escolher sempre a mesma coisa, o que torna o ato da escolha, da liberdade, nulo
mas formador.
Por
um lado, a violência da abstração que se dá através da forma-consumo é espetacularizada.
Consumir algo que não pode ser visto, ostentado,
não pode ser invejado e usado para dar inveja (rebaixar e etc.) ao outro, e,
portanto, não pode criar nenhum tipo de status positivo, que demarque a posição
daquele indivíduo no todo social, é um consumo irrisório, quase nulo: é isto
que acontece, por exemplo, com as ciências do Espírito, com o conhecimento
crítico; e por outro lado, a própria ideia de crítica não é mais objeto de “consumo”, já que todos a “possuem”
sem o mínimo esforço; portanto, ela não causa “impacto” pois, por um lado, é
dado para todos sem diferenciar
ninguém e, por outro, não é visível, não pode ser ostentada [OBS.: pode ser
ostentada, sim, quando é transformada em outra coisa, quando serve para
diferenciar, no plano visível do status, um indivíduo do outro – quantos de
nossos amigos usam a filosofia, por exemplo, para se “diferenciar” dos demais,
sem, entretanto, usar a filosofia: usam apenas sua imagem social reificada].
Por
outro lado, tudo tende a se tornar Espetáculo
na medida em que consome o outro – e todas as designações humanas – de forma
total. Assim, mesmo o que parece positivo, uma afirmação ou direito dos
indivíduos é, pelo contrário, sua anulação ao anular o outro. A “liberdade de
expressão”, para ser liberdade de uma expressão autêntica, deve ser violenta. Mas a violência que ela deve tomar forma é
aquela antissistemática, violência
contra a identidade e a tendência de identificação total à abstração social. Em
última instância, a liberdade (real) deve ser um ato violento que rompa com a
redução de tudo à ordem totalizante do capital. Qualquer “violência” que não
rompa com a ordem sistemática da sociedade abstraída dos indivíduos é
coisificação, ratificação do existente e, em última instância, inumana tal qual
o capital o é. Todavia, a liberdade de expressão, ou aquilo que reivindicam por
seu nome, é a forma completa da dominação social: liberdade de expressão, no Grande Espetáculo, é “liberdade” de
dominação, de constrangimento e discriminação: em uma palavra, é anulação
completa do outro, anulando a si mesmo, ainda que com aparência de progressão e
completude de si mesmo e de sua plena liberdade. A Sociedade do Espetáculo [tal como designa Guy Debord] é aquela em
que mesmo a morte é um espetáculo que deve ser visto, reverenciado, encenado
todos os trejeitos e “sentimentos” correspondentes. O Espetáculo é a morte:
morte da subjetividade, da humanidade dos indivíduos – isto quando não é a
morte física dos indivíduos e, apesar disso, esta morte (física) surge como o
epifênomeno de todo este movimento, ainda que apareça como “a causa”. Além do
“uso” dos indivíduos físicos – ou dos atributos físicos, como padrão de beleza,
por exemplo – como Espetáculo, há o Espetáculo com as designações humanas:
estas designações são o consumo de tudo que nos tornaria humanos e, ao
contrário, nos rebaixa cada vez mais à coisa: a morte é um espetáculo, tal como
a individualidade, a subjetividade criada a duras penas pelas frestas e brechas
que o sistema deixa e etc.; estas e outras designações legítimas são usadas, só
para citar as superfícies, como motivo de ridicularização, de rebaixamento ao
status de não-humano do outro e assim por diante. [Quanto a liberdade de
expressão, pense nas “piadas” e “stand-ups” racistas, machistas, xenófobos e
etc., que anulam o outro ao ratificar não sua própria existência, mas sua
existência concedida pela abstração
social capitalista; quanto ao Espetáculo das designações humanas, pense nos
programas que promovem a morte, a inveja, a discórdia, a violência física e
outras mais como programas de auditório ou programas que “clamam” pela tragédia
para a audiência e para o dinheiro, pelo ganho e lucro (Goethe e seus Fausto e
Mefistófeles ficariam pasmos – para não dizer “no chinelo” – perto de nossa época); a anulação completa do outro
e de si mesmo já está presente, pensar no futuro numa situação dessas, tal como
o capital nos faz sempre projetar, é ratificar a existência coisificada de
tudo, tanto material quanto espiritual].
Ora,
o Espetáculo violento está hoje em tantos lugares que mesmo aquele que deveria
(pelo menos segundo o conceito) nos desviar disso e retornar aos fundamentos mais
humanos ao nos ligar com o divino, está permeado de violência, tanto do
discurso, quanto das práticas e aspirações: a religião, tal como está dada, é
sempre pensada “desligada” do plano social e do momento histórico em que
vivemos; no entanto, ela é um momento dentro desse quadro, um elemento
indissociável. Em alguns casos, a religião é mais violenta do que se pensa,
pois o resquício de humano que poderia emergir frente ao inumano posto pelo
capital, ela oblitera, ela reprime, fazendo que aquela fresta por onde poderia
surgir seja sumamente fechada. É claro que isso cria patologias gigantescas [se
pensarmos em Freud, em relação à sexualidade, por exemplo, nem é preciso dizer
que a tentativa de criação de uma “humanidade de Deus” faz emergir aberrações grotescas,
tais como a ratificação da submissão da mulher ao homem, como a prática
irrestrita do sexo anal na tentativa de manter a virgindade perante Deus (OBS.:
não há nada de errado com o sexo anal e nem com sua prática, muito pelo
contrário; a questão aqui é a fórmula do discurso e a prática como aberração)].
Isto tudo para não dissertar sobre a forma-consumo
aí encarnada de modo pleno [pense, por exemplo, no “drive-thru de orações”,
no templo de Salomão (que poderia ser de Midas, faria mais sentido), nas
pequenas igrejas e templos da periferia que ratificam a si mesmas pela anulação
de todos os outros – pois, nos outros está o Diabo –, na extorsão em nome de
Deus, no enriquecimento imediato e nas conquistas materiais que Deus concebe,
permite e incentiva e etc.].
O
Espetáculo só é possível na medida em que a tendência à identificação total
está dada. E esta identificação total, por outro viés, ocorre na anulação do
outro como absorção total do outro. Se pensarmos em como a “esfera pública” é
criada no Brasil, talvez faça mais sentido. Por um lado, no mundo global a
esfera pública é um espaço de realização da coisificação, realização da
violência abstrata do capital. Por outro, e este especificamente brasileiro, o
espaço destinado ao público é um espaço de realização da individualidade, da
subjetividade. A casa-grande, na colônia, era o espaço público por excelência;
mas só era esfera pública na medida em que era espaço para realização das
designações, dos mandos e desmandos do senhor de engenho. A história atesta um
espaço destinado ao público permeado pelo sadismo, pela realização da
individualidade de mando e domínio. Além disso, no período mais recente, a
violência do senhor de engenho e do capitão-do-mato se altera qualitativamente:
torna-se violência do Estado, como espaço de realização da burguesia de engenho
(uma burguesia tipicamente brasileira) e violência da polícia. A ditadura
militar mais recente não foi superada: o que se superou, parcamente, foi a
forma política de mando, não as designações espirituais e sociais criadas ou
elevadas e ratificadas ali [NOTA: escrevi sobre isso no blog, ano passado: Sexta-feira
13 Sombria]. A esfera pública espetacularizada somente é possível na
medida em que ela é a imagem do indivíduo de mando. No entanto, não podemos
esquecer, esse indivíduo é reflexo do capital, engendrado pela sociedade
abstraída na mesma medida em que imagina que forma e dá as coordenadas desta
sociedade. Se imbricarmos os desígnios do capital com a história brasileira,
teremos uma imagem de nossa sociedade: um tipo de capitalismo potente, pois
alia a ideia de liberdade e igualdade capitalista com a sobreposição do
indivíduo de mando proveniente da colônia; cria-se, junto a isso, um tipo de
dominação violenta ratificada pelas práticas de liberdade, justiça e etc.,
engendradas ou reforçadas na ditadura militar. A violência hoje exercida em
nossa sociedade é a violência da anulação do outro inconveniente: o outro deve ser executado, anulado, para que o Eu
se realize [NOTA: sobre isso, escrevi aqui no blog: Panis et circenses: o circo trágico do
cotidiano].
A
violência se sobrepõe a todas outras formas de existência pois ela é a nossa
constituinte mais forte; é o que constitui mais firmemente nossa alma e nossa
existência histórica. O racismo se incorpora em nossa experiência com
existência naturalizada, na mesma medida em que o combate ao racismo é tornar
brancos os pretos [mas sem que isso apareça como anulação do preto, e sim como
sua realização: por ex., o padrão de beleza preto não difere do aceito (do
branco): traços finos, sorriso branco...; também a mídia utiliza o preto ou
para “colocá-lo em seu lugar” ou para utilizá-lo para fins de consumo (será que
mais pretos na TV, por exemplo, seria a ruptura do racismo ou a incorporação
dos pretos ao existente, sem uma superação do racismo? Em outras palavras, será
que não incorpora o preto ao anular sua diferença, ao jogá-lo no circo da
mesmice, do sempre-igual, ao fazê-lo parte integrante da corrida desenfreada
por “harmonia” social que, como harmonia, privilegia e dá aval e mais abertura
ao lucro e à exploração?)]. Na periferia, o racismo é mais grotesco: a PM,
composta, também ela, por pretos (ora, muitos capitães-do-mato eram de origem
negra), elimina a juventude da periferia de forma letal: há uma pena de morte,
desde muito tempo, imposta na periferia. Este tipo de violência, visto como seu
contrário – como justiça, que mais se assemelha à vingança (aliás, não poderia
se assemelhar a outra coisa, visto que temos uma sociedade de indivíduos, no
qual o bem social é o bem de algum indivíduo de mando – coronéis que mandam
concretamente existem nos confins do norte e nordeste do país; aqui existem
coronéis abstratos, que mandam sem ter uma face) –, é transportada a todos os
ramos sociais, até a esfera íntima. Como exemplo, a vingança e a anulação
física do outro têm exemplos nos casos deste ano, em que “bandidos” (pretos,
pobres) foram amarrados ao tronco (literalmente), por indivíduos que clamam por
justiça (pasmem!). Para não estender muito, não vou dar outros exemplos, como
os casos de gays, travestis e etc.; exemplo de pessoas pretensamente diferentes
que são eliminadas (fisicamente, inclusive), como aqueles que possuem outras
posições políticas, outras orientações normativas e etc..
A
sociedade brasileira composta historicamente por meio da violência engendra
mais violência, de todos os tipos. Se hoje a violência do “crime” cresce
desvairadamente, isto é fruto de uma desorganização que tem sua pretensa
organização no combate malfadado às mazelas históricas: a violência do “crime”,
combatida pela violência do Estado e pela violência policial (que é um Minority Report atrapalhado e mal
feito), não é um contraponto à ordem social: é seu complemento mais perfeito [NOTA:
sobre isso, escrevi no blog: Mais um ataque: capitães-do-mato e outsiders
na farsa histórica brasileira]. E não somente a violência policial, mas
a violência perpetrada pelas pessoas. Aliás, um é reflexo do outro e ambos são
reflexos e consequências históricas. A violência física, epifenômeno da
violência abstrata total, é a forma de organização da (in)existência social.
Não
precisamos de uma pena de morte legitimada; ela já existe, e de forma mais
completa, sem a legitimação judicial ou do Estado: sua legitimidade está na sua
forma ilegítima, na sua forma legitimada socialmente e praticada por todos. Se
a progressão continuada, por exemplo, é um erro do Estado, ela é ratificada
pela burocracia escolar e por professores: isto é violento e, por sua vez, dá
aval e alimenta a violência física [pense em Educação após Auschwitz, de Adorno]. A pena de morte é, primeiro, a
morte social irrevogável dos seres sociais coisificados (indivíduos
pretensamente autônomos); segundo, é a morte física perpetrada por todos a
todos, como num estado de natureza hobbesiano. A polícia tem aval para matar,
assim como qualquer indivíduo se sente no direito de dar aval para a morte do
outro: morte do outro = sua subjetividade satisfeita. A morte do outro é a
vitória do Eu, não do Eu subjetivo, mas do Eu objetivo: do capital. A ordem do
capital se completa com isso, ao contrário do que pensa a maioria: ela tende à
totalidade ao estender seus tentáculos obscuros e abstratos (como forma de
contraponto a si) por todos os cantos, todos os menores detalhes, frestas,
brechas sociais. Estamos fadados ao fracasso, mas um fracasso “gostoso”, que
traz satisfação pela anulação total.
Subsolo!